segunda-feira, 23 de agosto de 2010

BIODIVERSIDADE

A lógica do lucro e os delírios da razão


A crítica pautada pelo iluminismo clássico baseou-se em uma idéia de razão como oposição absoluta à emoção. Para Descartes e outros, usar a razão consistia em pensar longe de qualquer sentimento. Esta modalidade de pensar foi muito importante para libertar o homem da servidão religiosa, abrindo caminho para uma compreensão mais objetiva do mundo. De outro ângulo, a razão cartesiana conduziu o pensamento para uma lógica insensível às dores humanas.
Quando aqui se fala em razão, não se deve confundir isto com a racionalidade ordinária, isto é, com a saúde mental. A razão objetiva vai além de um bom funcionamento cerebral. Consiste em uma capacidade natural de compreender o mundo e a si próprio, que pode ou não ser desenvolvida, dependendo de condições históricas para tal.
Durante muitos séculos, esta capacidade foi obliterada por crenças que desvalorizavam a visão racional do mundo. Havia limites históricos para se compreender e a perspectiva racional terçava armas com forças muito poderosas, como nos casos conhecidos de Giordano Bruno, de Galileu Galilei e da Inquisição. O primeiro manteve suas posições e morreu na fogueira, o segundo foi obrigado a negar publicamente tudo o que sabia. O tribunal que os julgou existe até hoje, funcionando no Vaticano com um novo nome. O atual Papa foi o seu chefe até chegar ao posto de monarca da Igreja.
Somente os ingênuos imaginam que isto é coisa que desapareceu na curva do tempo. Ainda hoje para muita gente, o mundo é governado por forças sobrenaturais e a vida seria algo com mistérios insondáveis. Não são poucos os que acreditam em astrologia e nada sabem de astronomia; preferem medicinas ditas ‘alternativas’ ao uso crítico do saber acumulado pelas ciências médicas; crêem que a publicidade diz a verdade sobre os produtos que alardeiam; não percebem que são cotidianamente manipulados pelas mídias e que as idéias que acham possuir não são exatamente suas; são escravos de idéias religiosas que fogem a qualquer senso de possibilidade ou de realidade.
Ao longo do século passado, não foram poucos os perseguidos, presos, torturados, expulsos ou exilados por terem conhecimentos e idéias que eram consideradas impróprias ou perigosas. Dentre eles, havia religiosos que não concordavam com a opção pelos ricos, feita pelas igrejas tradicionais. Como na época de Bruno e Galileu, os que sabem de tudo isto continuam sendo perseguidos. Atualmente, é difícil prender ou assassinar alguém porque sabe mais do que os mais iludidos. Todavia, dependendo do lugar e do momento, isto pode acontecer. O pensamento continua sendo vigiado e o ato de pensar de modo independente e aberto é habitualmente punido. Facilmente, o crítico é compreendido como um querelante enlouquecido. O burocrata carreirista é visto como o verdadeiro cientista.
Nunca se deve esquecer que a posse de livros, considerados subversivos e hoje vendidos livremente, eram peças dos processos da época da finada ditadura militar. Para ficar mais claro, em respeito aos leitores mais jovens, os processados com base nas leis de segurança nacional – foram várias versões – eram levados aos tribunais com amarrados de livros, considerados como provas da ‘subversão’. Inúmeros estudantes, cientistas e professores foram proibidos de estudar e trabalhar. Alguns tiveram que deixar o país, para continuar a fazer o que sempre fizeram. Outros foram forçados a se adaptar.
Com o desenvolvimento das ciências e do capitalismo houve motivos de sobra para se desconfiar das primeiras. Isto porque ficou difícil esconder que elas passaram a trabalhar fundamentalmente para as burguesias e seus governos. A razão instrumental foi dominando pouco a pouco o pensamento científico e, hoje mais do que nunca, o cientista não tem mais fundamentalmente o papel possível de campeão do saber, a serviço da humanidade. Na maioria dos casos, mesmo se o quisesse, não poderia sê-lo. Os cientistas transformaram-se em proletários que trabalham para as empresas ou para os governos, em muitos casos, vinculados às mesmas. Existem inúmeras exceções. Entretanto, as regras são duras e é difícil quebrá-las.
É verdade, que parte das ciências esclarecidas a crítica ao status quo. É comum também que os cientistas se dividam entre os que estão a serviço e os que são contrários. Os primeiros lêem a razão de modo instrumental, retirando dela qualquer poder contestador. Os segundos, como Bruno e Galileu, vão mais além. Tentam usar dela para libertar a humanidade de seus grilhões. Viu-se isso no Brasil atual, na brilhante performance de Isaias Raw. Esta foi imediatamente criticada por vários eminentes ‘pesquisadores’ que pensam guardar a ética do comportamento dos que mais sabem. Estes esqueceram que a verdadeira ciência nasce do debate, das afirmações intimoratas e da coragem pessoal de alguns homens e mulheres.
Desgraçadamente, o pensamento objetivo transformou-se pouco a pouco em objetivismo e a apropriação histórico-social das classes ricas transformou a razão cartesiana em um aparato instrumental, útil às burguesias e às suas estratégias de dominação humana e de uso das descobertas tecnológicas para acumular e dominar mais e mais. O capitalismo pode crescer nos últimos dois séculos contando com um suporte filosófico-científico que o viabilizou. Ao usar e abusar desse suporte, os donos do poder tiveram que agüentar as críticas contundentes dos que se perceberam manipulados por seus governos. Alguns dos cientistas que trabalharam no Projeto Manhattan, definindo e construindo a bomba atômica norte-americana, ficaram estupefatos com o seu uso e foram ferozes críticos pacifistas do pós-guerra.
O atual e impressionante vazamento de petróleo no Golfo do México é uma prova da força da razão instrumental. O que importa é o lucro. Se existem efeitos colaterais, não faz mal. A poderosa British Petroleum continua sendo uma das maiores empresas do planeta. Segue na sua senda de lucro e de destruição pela face da Terra, incluindo o Brasil, na sua rota de passagem. Se ela provoca dores à natureza e aos homens, o que é mais significativo são as cifras monetárias que ela vem coletando ao longo do tempo.
Ninguém fala em fechar esta empresa e em retirar dela tudo o que acumulou. Cobrar multas e o tratamento dos efeitos é muito pouco. O crime é muito grande e a punição é desproporcional. Se nada se fizer de mais grave, não demorará muito para algo similar ocorrer novamente neste mundo dos homens, das águas, dos animais e dos vegetais. A preservação do mundo da vida e da natureza merece mais do que o lucro acumulado por qualquer empresa. A emoção gerada pelo sofrimento deveria iluminar a razão, transformando-a em um instrumento sensível e humanista. (Luís Carlos Lopes é professor e escritor.)


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