sexta-feira, 22 de outubro de 2010

REDAÇÃO - BARRO BRANCO

O CURSO EDUCACIONAL PROFª MÁRCIA GARCIA


PARABENIZA A ALUNA




KARINE SILVA CARCHEDI




PELO DESEMPENHO EM REDAÇÃO NO VESTIBULAR DA ACADEMIA DE POLÍCIA MILITAR DO BARRO BRANCO:


NOTA 19 (SOBRE 20)


VALEU, KARINE!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

FICHA LIMPA: DUAS PERSPECTIVAS

TEXTO 1
Ficha limpa é projeto demagógico, autoritário e flerta com o fascismo

Além de violar princípio da presunção da inocência, idéia retoma projeto da ditadura que estabeleceu a cassação dos direitos políticos pela "vida pregressa". Se pessoas com "ficha suja" não podem se candidatar, por que mesmo poderiam votar? Agora mesmo, sindicalistas do RS e de SP sofrem condenações por protestos contra seus governos. Estão com a "ficha suja"?
(Marco Aurélio Weissheimer)


O inferno está pavimentado de boas intenções. A frase cai como uma luva para contextualizar o debate sobre os políticos “ficha-suja” e o projeto “ficha-limpa” que ganhou grande apoio no país, à direita e à esquerda. Pouca gente vem se arriscando a navegar na direção contrária e a advertir sobre os riscos e ameaças contidos neste projeto que, em nome da moralização da política, pretende proibir que políticos condenados (em segunda instância) concorram a um mandato eletivo.

A primeira ameaça ronda o artigo 5° da Constituição, que aborda os direitos fundamentais e afirma que “ninguém será condenado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Professor de Direito Penal na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Túlio Vianna resumiu bem o problema em seu blog:

“Se o tal projeto Ficha Limpa for aprovado, o que vai ter de político sendo processado criminalmente só para ser tornado inelegível…Achei que o art.5º LVII exigisse trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Deve ser só na minha Constituição. Se o “ficha-limpa” não fere a presunção de inocência, é pior ainda, pois vão tolher a exigibilidade do cidadão mesmo sendo inocente. Êh argumento jurídico bão: nós continuamos te considerando inocente, mas não vamos te deixar candidatar mesmo assim! Que beleza! Ou o cara é presumido inocente ou é presumido culpado. Não tem meio termo. Se é presumido inocente, não pode ter qualquer direito tolhido”.

Na mesma linha, o jornalista e ex-deputado federal Marcos Rolim também chamou a atenção para o fato de que o princípio da presunção da inocência é uma das garantias basilares do Estado de Direito e que o que o projeto ficha limpa pretende estabelecer é o “princípio de presunção de culpa”. Além disso, Rolim lembra que a idéia de ficha limpa não é nova e já foi apresentada no Brasil, durante a ditadura militar:

“Foi a ditadura militar que, com a Emenda Constitucional nº 1 e a Lei Complementar nº 5, estabeleceu a cassação dos direitos políticos e a inegibilidade por “vida pregressa”; vale dizer: sem sentença condenatória com trânsito em julgado”.

E se a idéia de ficha limpa é pra valer, acrescenta o jornalista e ex-deputado federal, por que não aplicá-la também aos eleitores:

“Se pessoas com “ficha suja” não podem se candidatar, por que mesmo poderiam votar? Nos EUA, condenados perdem em definitivo o direito de votar, o que tem sido muito funcional para excluir do processo democrático milhões de pobres e negros, lá como aqui, “opções preferenciais” do direito penal. E a imprensa? Condenações em segunda instância assinalam uma “mídia ficha suja” no Brasil?”

Mas talvez a ameaça mais grave, e menos visível imediatamente, que ronda esse debate é a incessante campanha de demonização dos políticos e da atividade política, impulsionada quase que religiosamente pela mídia brasileira. Rolim cita como exemplo em seu artigo uma charge publicada no jornal Zero Hora sobre o tema: na charge de Iotti, políticos são retratados como animais peçonhentos, roedores, aracnídeos e felinos.

Nos últimos anos, diversas pesquisas realizadas em vários cantos do planeta registraram um crescente descrédito da população em relação à política e aos políticos de um modo geral. Prospera uma visão que coloca a classe política e a atividade política em uma esfera de desconfiança e perda de legitimidade. A tentação de jogar todos os partidos e políticos em uma mesma vala comum de oportunistas e aproveitadores representa um perigo para a sobrevivência da própria idéia de democracia. O que explica esse fenômeno que se reproduz em vários países? A política e os políticos estão, de fato, fadados a mergulhar em um poço sem fundo de desconfiança? Essa desconfiança deve-se unicamente ao comportamento dos políticos ou há outros fatores que explicam seu crescimento?

É sintomático que o debate sobre a “ficha limpa” apareça dissociado do tema da reforma política. Eternamente proteladas e engavetadas, as propostas de uma mudança na legislação sobre as eleições e o financiamento das campanhas não obtém mesmo o alto grau de consenso e mobilização. Vale a pena lembrar de uma observação feita pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek acerca do papel da moralidade na política. Ele analisa o caso italiano, onde uma operação Mãos Limpas promoveu uma devassa na classe política do país. Qual foi o resultado? Zizek comenta:

“Sua vitória (de Berlusconi) é uma lição deprimente sobre o papel da moralidade na política: o supremo desfecho da grande catarse moral-política – a campanha anticorrupção das mãos limpas que, uma década atrás, arruinou a democracia cristã, e com ela a polarização ideológica entre democratas cristãos e comunistas que dominou a política italiana no pós-guerra – é Berlusconi no poder. É algo como Rupert Murdoch vencer uma eleição na Grã-Bretanha: um movimento político gerenciado como empresa de publicidade e negócios. A Forza Itália de Berlusconi não é mais um partido político, mas sim – como o nome indica – uma espécie de torcida”. (Às portas da revolução", Boitempo, p. 332)

A eleição de políticos de “tipo Berlusconi” mostra outra fragilidade dessa idéia. Marcos Rolim desdobra bem essa fragilidade:

Muitos dos corruptos brasileiros possuem “ficha limpa” – especialmente os mais espertos, que não deixam rastros. Por outro lado, uma lei do tipo na África do Sul não teria permitido a eleição de Nelson Mandela, cuja “ficha suja” envolvia condenação por “terrorismo”. Várias lideranças sindicais brasileiras possuem condenações em segunda instância por “crimes” que envolveram participação em greves ou em lutas populares; devemos impedir que se candidatem?

Agora mesmo, cabe lembrar, no Rio Grande do Sul e em São Paulo lideranças sindicais estão sofrendo condenações por protestos realizados contra os governos dos respectivos estados. Já não estão mais com sua ficha limpa. Os governantes dos dois estados, ao contrário, acusados de envolvimento em esquemas de corrupção, de autoritarismo e de sucateamento dos serviços públicos seguem com a ficha limpíssima. É este o caminho? Uma aberração político-jurídica vai melhorar nossa democracia?

Marco Aurélio Weissheimer é editor-chefe da Carta Maior (correio eletrônico: gamarra@hotmail.com)

http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4631



TEXTO 2
Projeto Ficha Limpa: democrático, legítimo e constitucional


A Campanha Ficha Limpa, longe de se dar num contexto de autoritarismo, se desenrola como uma experiência de profundo exercício democrático. O projeto de lei é apenas parte de uma mobilização que tem como premissa básica a afirmação de que não se deve votar em pessoas que sabidamente irão se valer dos mandatos para desviar verbas públicas.
(Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral)


Projeto Ficha Limpa: democrático, legítimo e constitucional
O artigo “Ficha limpa é projeto demagógico, autoritário e flerta com o fascismo”, de Marco Aurélio Weissheimer, publicado em 18 de maio último neste sítio eletrônico, parte de premissas equívocas e de omissões injustificáveis.

Basta ver que o § 9° do art. 14 da Constituição de 1988 sequer é mencionado. É justamente esse dispositivo que o projeto de lei conhecido como “Ficha Limpa” busca ver observado.

Diz a referida norma constitucional que “Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada a vida pregressa do candidato (...)”.

Ou seja, quem determina que elementos da vida pregressa dos candidatos sejam levados em conta quando da definição de hipóteses de inelegibilidade é a Constituição da República, ninguém menos.

Há muito tempo o Supremo Tribunal Federal reconhece que “inelegibilidade não é pena” (MS nº 22087-2). Inelegibilidade é nada mais que um critério jurídico-político por meio do qual se define negativamente o perfil esperado dos candidatos.

Hoje já estão excluídos dos pleitos parentes e cônjuges de mandatários, e analfabetos. De que seriam culpados? De absolutamente nada. Sua exclusão se dá de forma preventiva porque a lei simplesmente considera inadequadas as suas candidaturas.

É o mesmo que estamos agora defendendo para aqueles que tiveram contra si proferido um acórdão (julgamento de um órgão colegiado) em que se afirmou o cometimento de uma infração penal grave, assim definida segundo critérios objetivos expressamente fixados na lei.

Ditas essas palavras, passamos a considerar algumas graves assertivas contidas no artigo acima referido.

Em primeiro lugar, a Campanha Ficha Limpa, longe de se dar num contexto de autoritarismo, se desenrola como uma experiência de profundo exercício democrático.

O projeto de lei é apenas parte – menor, talvez – de uma mobilização que já dura quase três anos e que tem como premissa básica a afirmação de que não se deve votar em pessoas que sabidamente irão se valer dos mandatos para desviar verbas públicas.

Foram incontáveis as reuniões e seminários em igrejas, associações, sindicatos etc. nas quais as pessoas eram convidadas a se mobilizarem contra a usurpação de mandatos por pessoas envolvidas com a prática declarada de atos ilegais.

Após debaterem o assunto, as pessoas eram convidadas a subscrever um projeto de lei que objetivava regulamentar um dispositivo da Constituição, o já citado § 9º do art.14 da Constituição. Trata-se do manejo de um mecanismo de expressão da democracia direta: a iniciativa popular de projeto de lei prevista no art. 14, II, da CF. O resultado disso foi a conquista de quase 4 milhões de apoios populares individuais, se consideradas as subscrições físicas e on-line.

Essas assinaturas foram então apresentadas ao Parlamento, onde presentemente estão sendo submetidas a um rico debate e a algumas modificações que, a nosso ver, aprimoraram o texto inicial.

É essa a descrição de um caminho autoritário?

O caminho adotado pelo Ficha Limpa é o da mobilização popular, do exercício da democracia direta e da pressão legítima sobre o Parlamento.

Outra acusação contida no artigo de Weissheimer é a de que o conteúdo dessa iniciativa aponta para a descredibilização da política.

Também aqui a realidade é bem diferente. A Campanha Ficha Limpa está conseguindo despertar o interesse pela política por parte de pessoas que já não mais tinham esperanças. Quem descredibiliza a política são os que desviam verbas públicas para si ou para seu partido.

Estamos fazendo o caminho inverso, dizendo que muitos dos espaços abertos pela política estão hoje preenchidos por usurpadores e que é preciso recuperar as bandeiras e ideologias, hoje banidas por um pragmatismo que nivela quase todos os partidos.

Muitos dos mandatos políticos no Brasil não estão sendo preenchidos por “líderes populares perseguidos”, mas por fraudadores de licitações e praticantes de malversação de verbas destinadas à promoção da vida. Isso precisa parar. A diferença entre os que assim operam para financiar seu apartamento em Miami ou para garantir a manutenção do seu partido no poder é exatamente nenhuma.

Também não é verdadeira a afirmação de que a Campanha Ficha Limpa se dá fora do contexto da Reforma Política.

Ela é apenas o ensaio da mobilização popular que será realizada na seqüência: um projeto de reforma do sistema político formulado pela sociedade em conferências populares, como base para uma nova iniciativa popular de projeto de lei.

Aqueles que hoje não são capazes sequer de compreender que a sociedade pode validamente se rebelar contra o domínio da política pelo crime terão em breve muita dificuldade para entender como trabalhadores e trabalhadoras, donas de casa, estudantes, intelectuais e artistas poderão fazer a política mudar de baixo para cima, num movimento democrático radical, consistente e legítimo.

(organização da sociedade civil)

http://www.cartamaior.com.br/templates/analiseMostrar.cfm?coluna_id=4637

sábado, 16 de outubro de 2010

Ex-aluna diz que Monica Serra contou ter feito aborto

16 de outubro de 2010 12:39


Por Redação Yahoo! Brasil

Reportagem do jornal "Folha de São Paulo", publicada neste sábado (16), afirma que duas ex-alunas da esposa do presidenciável José Serra (PSDB) no curso de dança da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) disseram que ouviram da psicóloga Monica Serra que ela fez um aborto quando estava no exílio com o marido, no Chile. A revelação teria sido feita durante uma aula, em 1992.

Em um evento no Rio de Janeiro, há um mês, Monica teria dito a um evangélico, segundo a Agência Estado, que a candidata Dilma Rousseff (PT), que defendeu a descriminalização do aborto em 2007, é a favor de "matar criancinhas".

No último domingo (10), a bailarina Sheila Canevacci Ribeiro, 37, postou uma mensagem no site Facebook para "deixar a minha indignação pelo posicionamento escorregadio de José Serra" em relação ao tema aborto. Ela escreveu que Serra não respeitava "tantas mulheres, começando pela sua própria mulher. "Com todo respeito que devo a essa minha professora, gostaria de revelar publicamente que muitas de nossas aulas foram regadas a discussões sobre o seu aborto traumático", escreveu Sheila. Procurada pela reportagem da Folha, a bailarina diz que "confirma cem por cento" tudo o que escreveu.

O jornal localizou uma segunda aluna de Monica, que falou sob anonimato. Ela afirma que a psicóloga contou em aula que fez o aborto por causa da ditadura, pois o futuro dela e de José Serra era muito incerto.

A reportagem do jornal afirma que tentou falar com Monica durante dois dias, mas sua assessoria disse que "não havia como responder".



http://br.eleicoes.yahoo.net/noticia/ex-aluna-diz-que-monica-serra-contou-ter-feito-aborto.html

O perigo da radicalização política

Por que não devemos nos deixar influenciar pelo obscurantismo

Por Rodrigo A. Correia


A revista Bussinessweek trata em sua edição desta semana de um tema bastante interesssante e controverso: “Por que o empresariado não confia no Tea Party”. O Tea Party é um movimento político norte-americano pretensamente apartidário, mas que na prática apresenta-se como a extrema direita do partido Republicano. É o “o não-partido mais direitista no cenário político americano”.

O Tea Party apresenta-se como um grupo que representa as pessoas comuns, propondo uma retomada dos valores tradicionais da democracia americana, entretanto, segundo Lucas Mendes, colunista da BBC radicado nos EUA, o movimento é sustentado por bilionários conservadores, interessados em confrontar Barack Obama e sua política social. Outra fonte de apoio são as empresas de mídia, interessados em expressar seus pontos de vista de ultra-direita como a Fox News, do empresário Rupert Murdoch. Tanto a farta distribuição de recursos por parte do Big Business quanto o apoio incondicional da mídia mais conservadora têm marcado a tônica da ascenção deste movimento.

Uma característica marcante do Tea Party é o envolvimento em casos de violência e corrupção, além do radicalismo de suas posições políticas. Christine O'Donnel, por exemplo, a candidata apoiada pelo Tea Party para o senado em Delaware, tem um histórico de desfalques e calotes, além de um controverso passado “bruxaria” na universidade... Ainda segundo Lucas Mendes, na coleção de caricaturas do Tea Party temos Sharon Angle, candidata ao Senado por Nevada, que promete acabar com a Previdência Social, e a assistência médica para idosos, e Carl Paladino, candidato a governador de Nova York, que até agora era mais famoso pelas amizades suspeitas e pelos e-mails pornográficos e racistas. A lista segue com inúmeros outros exemplos.

Sarah Palin, a grande estrela do Tea Party, e famosa pela capacidade de autopromoção, é um dos diversos membros do movimento conservador a conseguir emprego na Fox News, num fenômeno que marca uma interessante inversão de valores: ao invés de a imprensa apoiar (ou trabalhar para) o movimento ou partido, são os atores políticos que tornam-se funcionários da imprensa.

Citando o caso das eleições na Carolina do Sul, a Businessweek descreve como o candidato ao governo do Estado, Nikki Haley, foi preterido pela “South Carolina Chamber of Commerce”, apesar de ele mesmo ser um homem de negócios e em tese ter o perfil ideal para ser apoiado pela instituição. As palavras-chave que levaram a Câmara de Comércio a negarem apoio ao candidato (apesar de seu favoritismo) foram justamente estas que vêm balançando o sistema político americano nos últimos anos: “Tea Party”. A radicalização conservadora e o discurso raivoso assustam o empresariado norte-americano que não tem postura politizada e não tem acesso tão direto ao poder. Só os milionários conservadores radicais apóiam o movimento.

As eleições brasileiras têm assumido contornos bastante parecidos, especialmente agora com o segundo turno das eleições presidenciais. A mídia nacional passou a apoiar abertamente o campo conservador e assumiu para si a tarefa de fazer de José Serra no novo presidente do Brasil.

Assim como o Tea Party, o movimento político informal criado em torno da candidatura Serra (mídia conservadora, neopentecostalismo, alas radicais do catolicismo, partidos dpolíticos de direita) adota uma postura radical e abraçou o obscurantismo como ferramenta política. A transformação do aborto da religião em grande tema do debate político nacional é uma demonstração clara disso.

Serra posa como paladino da família, da moral e da religião exatamente como o faz Sarah Palin. Outra similaridade interessante é o fato de que tornou-se difícil afirmar com certeza quem trabalha para quem. A coligação política PSDB-DEM, trabalha para a “coligação” informal Veja-Folha-Estadão, ou o oposto?

Assim como as caricaturas do Tea Party, o movimento que apóia José Serra conta com nomes de calibre como Paulo Preto, ex- diretor do Departamento Estadual de Rodovias S.A do Governo de São Paulo (Dersa) que segundo reportagem da ISTO É, montou um esquema de arrecadação de caixa dois para o tucano e fugiu com o dinheiro, e Aloysio Nunes, Senador eleito pelo estado de SP, que comprou apartamento com dinheiro “emprestado” por Paulo Preto. Tais informações são criminosamente sonegadas pelo bloco de mídia que comanda a coordenação da campanha tucana, enquanto o caso de nepotismo, envolvendo o filho da ex-ministra da Casa Civil, Erenice Guerra foi explorado à exaustão, embora em nada estivesse relacionado com estas eleições.

Curiosamente, renegando seu passado de líder estudantil e de resistência contra o regime militar, José Serra adota uma postura tão radicalmente conservadora que poderia constranger os tradicionais membros da direita do DEM, antiga base de sustentação política do regime militar. Ao optar pelo fervor religioso de ocasião, pela prática do obscurantismo no debate sobre o aborto (apesar de sua própria esposa, segundo consta, ter abortado justamente por causa das dificuldades do casal em função da perseguição política e do exílio. A coreógrafa Sheila Canevacci Ribeiro ex-aluna de Mônica Serra, afirmou que em 1992 Mônica Serra discutia o tema em sala de aula e disse ter feito aborto ela mesma, fato confirmado por outras alunas do Instituto de Artes da UNICAMP), José Serra prestou um grande serviço ao atraso. Dificilmente o Brasil estaria preparado para a adoção do aborto como política pública de saúde, até porque não se consegue oferecer a contento nem mesmo serviço dentário. Oferecer esta “liberdade” para a mulher em relação ao próprio corpo, num país onde a violência doméstica ainda é endêmica, é um retrato da hipocrisia nacional no trato do tema. Certamente Dilma Roussef, como mulher sabe disso, e ao invés de criar clínicas abortivas, apoiará uma política de educação e valorização da mulher, seja ela ou não pessoalmente favorável ao aborto.

Ao renegar todas as conquistas democráticas daqueles que fizeram resistência tenaz ao regime militar e pagaram preço elevado pela liberdade do povo brasileiro, tachando injustamente Dilma Roussef de terrorista, Serra assume o mesmo discurso daqueles que o obrigaram ao exílio. Isso mancha sua própria biografia, expondo um traço de caráter (ou falta dele) que predispõe seu grupo político-midiático ao vale-tudo, à polarização de ódio.

O empresariado médio americano entendeu que é perigoso se colocar nas mãos de um grupo de fanáticos obscurantistas, que usam a religião, o medo, a ignorância e a desinformação como armas políticas.

Não estará na hora de toda a sociedade brasileira começar fazer o mesmo?



Rodrigo Alves Correia

Cientista político,
Professor do Curso de Relações Internacionais da UNESP Campus de Marília SP

Artigo publicado em : http://www.panoramamundi.com/2010/10/16/o-perigo-da-radicalizacao-politica/

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O processo da vida e o aborto

Colunistas| 12/10/2010 | Copyleft


DEBATE ABERTO




Tudo o que concorre para o surgimento da vida deve ser objeto do cuidado por parte de todos. Não dá para pensar a vida humana fora do contexto maior da vida em geral, da biosfera e das condições ecológicas que sustentam o processo inteiro. Tais conhecimentos mal são evocados no debate atual.

Leonardo Boff

(*) O artigo abaixo foi escrito por Leonardo Boff em março de 2008

Há tempos foram-me feitas duas perguntas. Recolho às respostas.

1. Como define a concepção de "vida"? O tema "vida" é objeto de muitos estudos, especialmente a partir da nova biologia, da teoria do caos e das ciências da complexidade.(**)

Superou-se a visão darwiniana que estudava a vida somente a partir dos organismos vivos e da biosfera. Hoje trata-se de inserir na discussão da vida todos os seus pressupostos cósmicos, físico-químicos, a consideração quântica dos campos e redes de energia sem os quais não se entende a vida. Como diz Stephen Hawking em seu livro "Uma Nova História do Tempo", "tudo no universo precisou de um ajuste muito fino para possibilitar o desenvolvimento da vida. Por exemplo, se a carga elétrica do elétron tivesse sido apenas ligeiramente diferente, teria danificado o equilíbrio da força eletromagnética e gravitacional nas estrelas e, ou elas teriam sido incapazes de queimar o hidrogênio e o hélio, ou então não teriam explodido. De uma maneira ou de outra, a vida não poderia existir" (Ediouro, 2005, p. 121).

A tendência atual da pesquisa é ver a vida como uma expressão de todo o processo evolutivo. Ao alcançar certo grau de complexidade e estando longe do equilíbrio (certo nível de desarranjo de uma ordem dada), emerge a vida como auto-organização da matéria. Sempre que isso ocorre, em qualquer parte do universo, a vida eclode como um imperativo cósmico. É a tese central de Chistian de Duve, Prêmio Nobel de Biologia, em seu famoso livro "Poeira Vital" (Campus, 1977). A vida humana é entendida como subcapítulo do capítulo da vida. Para entender a vida, deve-se, pois, observar todo o processo evolutivo com as precondições que possibilitaram outrora e ainda hoje possibilitam a emergência da vida. Isso não define a vida. Apenas tenta explicar como surgiu. Ela mesma é uma emergência misteriosa até para os próprios cientistas.

2. Quando se fala sobre o início da vida, a Igreja Católica afirma que ela começa no momento da concepção, em que óvulo e espermatozóide se encontram. Assim sendo, mulheres que optam por realizar um aborto são acusadas de terem cometido um atentado contra uma vida em potencial. Como avaliar a definição de vida entre um embrião ou feto e uma mulher?

Se inserirmos a vida no processo global da evolução, não podemos nos contentar com essa visão assumida oficialmente pela Igreja nos dias atuais. Na Idade Média, não era assim, pois para Tomás de Aquino a humanização começava apenas após 40 dias da concepção. A Igreja, para efeito de sua ética interna, pode estabelecer um momento da concepção da vida humana. Mas ela deve estar consciente de que está entrando num campo no qual não tem competência específica, o campo da ciência.

Se entendermos a vida como um processo cósmico que culmina na fecundação do óvulo, então devemos cuidar de todos os processos necessários para a emergência da vida, como a infra-estrutura ambiental e social. Tudo o que concorre para o surgimento da vida deve ser objeto do cuidado por parte de todos. Todos os seres, especialmente os vivos, são interdependentes. Não dá para pensar a vida humana fora do contexto maior da vida em geral, da biosfera e das condições ecológicas que sustentam o processo inteiro. Tais conhecimentos mal são evocados no debate atual.

Ademais, devemos entender a vida humana processualmente. Ela nunca está pronta. Lentamente vai desenrolando o código genético, que conhece várias fases, até que o ser concebido ganhe relativa autonomia. Mesmo depois de nascidos, nós não estamos ainda prontos, pois não temos nenhum órgão especializado que assegure nossa sobrevivência. Precisamos do cuidado dos outros, do trabalho sobre a natureza para garantir nossa sobrevivência. Estamos sempre em gênese. Todo esse processo é humano. Mas ele pode ser interrompido numa das fases. Isso quer dizer que ocorre a interrupção de um processo que tendia à plenitude humana, mas que essa não foi alcançada.

Nesse quadro pode ser situado o aborto. Devemos proteger o mais possível o processo, mas devemos também entender que ele pode ser interrompido por razões aleatórias ou pela determinação humana. Esta não é isenta de responsabilidade ética. Mas ela deve atender ao caráter processual da constituição da vida até alcançar a autonomia. Não é uma agressão ao ser humano propriamente dito, mas ao processo que tendia constituir um ser humano.

(**) As perguntas referidas pelo autor foram feitas para o livro Em defesa da vida: aborto e direitos humanos, publicado por Católicas pelo Direito de Decidir em 2006. (Clique aqui para mais detalhes sobre o livro)



Leonardo Boff é teólogo e escritor.



http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4828&boletim_id=777&componente_id=12913

Mineiros chilenos, vítimas da flexibilização trabalhista

13/10/2010



O presidente chileno Sebastien Piñera quer se fazer de herói do resgate dos mineiros, presos há mais de dois meses numa mina, mas ele é duplamente algoz dos trabalhadores daquele país. Em primeiro lugar, porque seu governo não controla as condições de exploração da força de trabalho, nem sequer do segmento mais importante da economia chilena. As condições subumanas de trabalho dos sofridos trabalhadores mineiros, principais produtores das riquezas fundamentais do país, não encontram nenhum controle dos órgãos do governo, além de que, com a quebra da empresa que os superexplora, nem sequer seus direitos básicos estão garantidos.

Mas de uma outra forma também Piñera é responsável pelas condições de trabalho dos trabalhadores chilenos. Ele é irmão de José Piñera – cujo grupo econômico é proprietário da LAN Chile, que acaba de comprar a TAM – tristemente famoso por ter introduzido a chamada lei de “flexibilização laboral”, com a conhecida cantilena de que, diminuindo os custos de contratação da mão de obra - às custas dos direitos dos trabalhadores – se expandiria o mercado de trabalho e diminuiria o desemprego.

Utilizou a enganosa expressão “flexibilização”, para expropriar direitos trabalhistas, a começar pelo contrato com carteira de trabalho, o emprego formal. A maioria dos trabalhadores foram jogados na informalidade. Submetidos a condições ilimitadas de exploração.

Usam duas palavras enganadoras: flexibilidade e informalidade, que seduzem (as preferimos à inflexibilidade e à formalidade), mas neste caso seu verdadeiro conteúdo é: precariedade das condições de trabalho. É trabalhar sem contrato, sem possibilidade de apelar à Justiça, de associar-se, de ter uma identidade social.

Essa política, nascida na ditadura do Pinochet, foi se associando a todos os governos neoliberais na América Latina, fazendo com que a maioria dos trabalhadores do continente passasse a ser estarem submetidos à precariedade laboral, a não ter contrato de trabalho.

O governo tucano de FHC-Serra adotou essa política, com os mesmos mecanismos e argumentos do José Piñera e da ditadura pinochetista, causando níveis de exploração da força de trabalho (extração da mais valia), de desemprego aberto e camuflado, de precariedade, jamais vistos no Brasil.

Esses mineiros chilenos foram, eles também vítimas dessas condições de trabalho, a mesma a que passaram a ser submetidos a maioria dos trabalhadores latinoamericanos.

O governo Lula recuperou, regularmente, os contratos de trabalho formal, que aumentaram sempre, ao longo dos dois mandatos presidenciais, depois ter recebido uma herança também socialmente maldita do governo FHC-Serra. Essa uma diferença essencial entre os dois governos: desamparo dos trabalhadores diante da exploração ou afirmação dos seus direitos formais de trabalho.


Postado por Emir Sader às 02:17



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O argumento de Marilena Chauí para atrair o voto verde

Meio Ambiente| 12/10/2010 | Copyleft

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Para a professora de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), apoiar José Serra significa a agroindústria ligada ao latifúndio e, portanto, o ataque ao meio ambiente e também à possibilidade de reformar a situação da terra no Brasil. "É preciso conversar com os ambientalistas", defendeu Marilena Chauí, e "mostrar que o mapa da votação indica que José Serra foi vitorioso em todas as regiões da agroindústria, do latifúndio que ataca o meio ambiente". "Não é pouco que isso se refira à estrutura da terra criada desde a colonização, que isso seja ligado aos obstáculos contra a Reforma Agrária e que se refira também ao ataque contra o meio ambiente", adverte.

Redação - Carta Maior



Em ato realizado na última sexta-feira na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, a professora de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), Marilena Chauí, apresentou um argumento para a campanha de Dilma Rousseff atrair, neste segundo turno da eleição, os votos de ambientalistas que foram para Marina Silva no primeiro turno: "É preciso mostrar aos ambientalistas que José Serra foi vitorioso em todas as regiões da agroindústria, do latifúndio que ataca o meio ambiente", defendeu. Reproduzimos a seguir a fala de Marilena Chauí sobre essa questão (ver vídeo):

"O mapa da votação mostra que José Serra foi vitorioso em todas as regiões da agroindústria. Portanto, foi vitorioso nas regiões que, no meu tempo, quando era jovem, chamávamos de latifúndio. Ele foi vitorioso no latifúndio e no latifúndio que ataca o meio ambiente e que impede a Reforma Agrária".

"Não é pouco. Não é pouco que isso se refira à estrutura da terra criada desde a colonização, que isso seja ligado aos obstáculos contra a Reforma Agrária que se refira também ao ataque contra o meio ambiente".

"Então, é preciso conversar com os ambientalistas, pelos quais tenho o maior respeito. Ao chegar na minha idade, a questão principal é o futuro das novas gerações. Eu penso nos jovens que estão aqui. Eu penso nos meus netos. É preciso lembrar aos ambientalistas que apoiar José Serra significa apoiar a agroindústria e, portanto, o ataque ao meio ambiente e à possibilidade de reformar a situação da terra no Brasil".


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Eleições presidenciais 2010: em leilão, os ovários das mulheres!

Publicado: 13/10/2010 por Revista Espaço Acadêmico em colaborador(a), gênero, política, religiões

FÁTIMA OLIVEIRA*


“Isso aqui”, o Brasil, não é um colônia religiosa, não é um Reino e nem um Império, é uma República! Dado o clima do segundo turno das eleições presidenciais brasileiras, parece que as urnas vão parir uma Rainha ou um Rei de Sabá, uma Imperatriz ou um Imperador, que tudo pode, manda em tudo e que suas vontades e ideias, automática e obrigatoriamente, viram lei! Não é bem assim…

Bastam dois neurônios íntegros para nos darmos conta que o macabro leilão de ovários (com os ovários de todas as brasileiras!), em que o aborto virou cortina de fumaça, objetiva encobrir o discurso necessário para o povo brasileiro do que significa, timtim por timtim, eleger Dilma ou Serra.

No tema do aborto a tendência mundial é, no mínimo, o aumento dos permissivos legais, que no Brasil são dois, desde 1940: gravidez resultante de estupro e risco de vida da gestante. Pontuando que legalização do aborto ou o acesso a um permissivo legal existente não significa jamais a obrigatoriedade de abortar, apenas que a cidadã que dele necessitar não precisa fazê-lo de modo clandestino, praticando desobediência civil e nem arriscando a sua saúde e a sua vida, cabe ao Estado laico e democrático colocar à disposição de suas cidadãs também os meios de acessar um procedimento médico seguro, como o abortamento.

Negá-lo, como tem feito o Brasil, que se gaba de possuir um dos sistemas de saúde mais badalados do mundo que garante acesso universal a TODOS os procedimentos médicos que não estão em fase de experimentação, é imoral, pois quebra o princípio do acesso universal do direito à saúde! Eis os termos éticos para o debate sobre o aborto numa campanha eleitoral. Nem mais e nem menos!

Então, o que estamos assistindo nas discussões do atual processo eleitoral é uma disputa para ver quem é a candidatura mais CAPAZ de desrespeitar os princípios do SUS, pasmem, em nome de Deus, num Estado laico! Ora, quem ocupa a presidência da República pode até ser carola de carteirinha, mas para consumo pessoal e não para impor seus valores para o conjunto da sociedade, pois a República não é sua propriedade privada!

Repito, não podemos esquecer que isso aqui, o Brasil, é uma República que se pauta por valores republicanos a quem todos nós devemos respeito, em decorrência, não custa nada dizer às candidaturas que limitem as demonstrações exacerbadas de carolice ao campo do privado, no recesso dos seus lares e de suas igrejas, pois não estão concorrendo ao governo de um Estado teocrático, como parece que acreditam. Como cidadã, sinto-me desrespeitada com tal postura.

As opções religiosas são direitos pétreos e questões do fórum íntimo das pessoas numa democracia. Jamais o norte legislativo de uma Nação laica, democrática e plural. Para professor uma fé e defendê-la é preciso liberdade de religião, só possível sob a égide do Estado laico, onde o eixo das eleições presidenciais é a escolha de quem a maioria do povo considera mais confiável para trilhar rumo a um país menos miserável, de bem-estar social, uma pátria-mátria para o seu povo.

Ou há pastores/as e padres que insistem em ignorar a realidade? “Chefe religioso” ignorante de que a sua religião necessita das liberdades democráticas como do ar que respiramos, não merece o lugar que ocupa, cabendo aos seus fiéis destituí-los do cargo, aí sim em nome de Deus, amém!

O leilão de ovários em curso resulta de vigarices e pastorices deslavadas, de má-fé e falta de escrúpulos que manipulam crenças religiosas de gente de boa-fé para enganá-las, como a uma manada de vaquinhas de presépio, vaquejadas por uma Madre Não Sei das Quantas, cristã caridosa e reacionária disfarçada de santa, exemplar perfeito de que pessoas desse naipe só a miséria gera. Num mundo sem miséria, madres lobas em pele de cordeiro são desnecessárias e dispensáveis. É pra lá que queremos ir e o leilão de ovários quer impedir!

Quem porta uma gota de lucidez tem o dever, moral e político, de não permitir que a escória fundamentalista de qualquer religião, que faz da religião um balcão de negociatas que vende Deus, pratica pedofilia e fica impune e ainda tem a cara de pau de defender a impunidade para pedófilos e os acoberta desde os tempos mais remotos, nos engabele e ande por aí com uma bandeja de ovários transformando a escolha de quem presidirá a República num plebiscito pra definir quem tem mais mão de ferro pra mandar mais no território do corpo feminino!

Cadê a moral dessa gente desregrada para querer ditar normas de comportamento segundo a sua fé religiosa para o conjunto da sociedade, como se o Brasil fosse a sua “comunidade religiosa”? Ora, qualquer denominação religiosa em terras brasileiras está também obrigada ao cumprimento das leis nacionais, ou não? Logo o que certas multinacionais da religião fizeram no processo eleitoral 2010 tem nome, chama-se ingerência estrangeira na soberania nacional. E vamos permitir sem dar um pio?

Diante dessa juquira (brotação da mata pós-desmatamento), onde só medrou urtiga e cansanção, cito Brizola, que estava coberto de razão quando disse: “O Brasil é um país sem sorte”, pois em pleno Século 21 conta com candidaturas presidenciais (não sobra uma, minha gente!) reféns dos setores mais arcaicos e feudais de algumas religiões mercantilistas de Deus.

É hora de dar um trato ecológico na juquira que empana os ideais e princípios republicanos, fora dos ditames da “moderna” agenda verde financeira neoliberal da “nova política”, que no Brasil é infectada de carcomidas figuras, que bem sabemos de onde vieram e pra onde vão, se o sonho é fazer do Brasil um jardim de cidadania, similar ao que Cecília Meireles tão lindamente poetou.

“Quem me compra um jardim com flores?/ borboletas de muitas cores,/ lavadeiras e passarinhos,/ ovos verdes e azuis nos ninhos?/ Quem me compra este caracol?/ Quem me compra um raio de sol?/ Um lagarto entre o muro e a hera,/ uma estátua da Primavera?/ Quem me compra este formigueiro?/ E este sapo, que é jardineiro?/ E a cigarra e a sua canção?/ E o grilinho dentro do chão?/ (Este é meu leilão!)” [Leilão de Jardim, Cecília Meireles].

Em 2010 em nosso país o que está em jogo é também a luta por uma democracia que se guie pela deferência à liberdade reprodutiva e que considere a maternidade voluntária um valor moral, político e ético, logo respeita e apoia as decisões reprodutivas das mulheres, independente da fé que professam. Nada a ver com a escolha de quem vai mandar mais no território dos corpos das mulheres! Então, xô, tirem as mãos dos nossos ovários!


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* FÁTIMA OLIVEIRA é médica e escritora. Feminista. Integra o Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR) e o Conselho Consultivo da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe (RSMLAC). Escreve uma coluna semanal no jornal O Tempo (BH, MG), desde 3 de abril de 2002. Uma das 52 brasileiras indicadas ao Nobel da Paz 2005, pelo projeto 1000 Mulheres para o Nobel da Paz 2005. Autora dos seguintes livros de divulgação e popularização da ciência: Engenharia genética: o sétimo dia da criação (Moderna, 1995 – 14a. impressão, atualizada em 2004); Bioética: uma face da cidadania (Moderna, 1997 – 8a. impressão atualizada, 2004); Oficinas Mulher Negra e Saúde (Mazza Edições, 1998); Transgênicos: o direito de saber e a liberdade de escolher (Mazza Edições, 2000); O estado da arte da Reprodução Humana Assistida em 2002 e Clonagem e manipulação genética humana: mitos, realidade, perspectivas e delírios (CNDM/MJ, 2002); Saúde da população Negra, Brasil 2001 (OMS-OPS, 2002). Autora dos seguintes romances: A hora do Angelus (Mazza Edições, 2005); Reencontros na travessia: a tradição das carpideiras (Mazza Edições, 2008); e Então, deixa chover (no prelo). E-mail: fatimaoliveira@ig.com.br Texto publicado como ESPECIAL PARA O VIOMUNDO, em http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/fatima-oliveira-comeca-a-reacao-das-mulheres-contra-o-aiatola-serra.html

terça-feira, 12 de outubro de 2010

ABORTO: POR UMA LEGISLAÇÃO A FAVOR DA VIDA

Frei Betto *


O terapeuta se depara com o drama de mulheres que abortaram. Como religioso, solicitam-me aquelas que, diante de gravidez indesejada, sofrem a angústia da dúvida. Raramente vêm acompanhadas por seus parceiros - o que é preocupante sintoma.
Em pleno século XXI questões sérias como o aborto são, ainda, consideradas tabus. Lamento as dificuldades que a Igreja Católica impõe à discussão. Se a teologia é o esforço de apreensão racional das verdades de fé, o teólogo tem o dever de manter-se aberto a todos os temas que dizem respeito à condição humana, mormente se encerram implicações morais.
Embora contrário ao aborto, admito a sua descriminalização em certos casos e sou favorável ao mais amplo debate, pois se trata de um problema real e grave que afeta a vida de milhares de pessoas e deixa seqüelas físicas, psíquicas e morais.
Ao longo da história, a Igreja nunca chegou a uma posição unânime e definitiva. Oscilou entre condená-lo radicalmente ou admiti-lo em certas fases da gravidez. Atrás dessa diferença de opiniões situa-se a discussão sobre qual o momento em que o feto pode ser considerado ser humano. Até hoje, nem a ciência nem a teologia tem a resposta exata. A questão permanece em aberto.
Santo Agostinho (sec. IV) admite que só a partir de 40 dias após a fecundação se pode falar em pessoa. Santo Tomás de Aquino (séc. XIII) reafirma não reconhecer como humano o embrião que ainda não completou 40 dias, quando então lhe é infundida a "alma racional".
Esta posição virou doutrina oficial da Igreja Católica a partir do Concílio de Trento (séc. XVI). Mas foi contestada por teólogos que, baseados na autoridade de Tertuliano (séc. III) e de santo Alberto Magno (séc. XIII), defendem a hominização imediata, ou seja, desde a fecundação trata-se de um ser humano em processo. Contudo, a discussão encerra-se oficialmente com a encíclica Apostolica Sedis (1869), na qual o papa Pio IX condena toda e qualquer interrupção voluntária da gravidez.
No século XX, introduz-se a discussão entre aborto direto e indireto. Roma passa a admitir o aborto indireto em caso de gravidez tubária ou câncer no útero. Mas não admite o aborto direto nem mesmo em caso de estupro.
Bernhard Haering, um dos mais renomados moralistas católicos, admite o aborto quando se trata de preservar o útero para futuras gestações ou se o dano moral e psicológico causado pelo estupro impossibilita aceitar a gravidez. É o que a teologia moral denomina ignorância invencível. Nem a Igreja tem o direito de exigir sempre de seus fiéis atitudes heróicas.
Roma é contra a descriminalização do aborto baseada no princípio de que não se pode legalizar algo que é ilegítimo e imoral: a supressão voluntária de uma vida humana. A história demonstra, porém, que nem sempre a Igreja o aplicou com igual rigor a outras esferas, pois defende a legitimidade da "guerra justa" e da revolução popular em caso de tirania prolongada e inamovível por outros meios (Populorum Progresio). É o princípio tomista do mal menor. Em muitos países, a Igreja aprova a pena de morte para criminosos.
Embora a Igreja defenda a sacralidade da vida do embrião em potência, a partir da fecundação, ela jamais comparou o aborto ao crime de infanticídio e nem prescreve rituais fúnebres ou batismo in extremis para os fetos abortados…
É preciso encarar com seriedade as razões que induzem uma gestante ao aborto. A opção de abortar é moral e política. Pode ser encarada pelo ângulo do poder do mais forte sobre o frágil. Tão frágil que podem ser encontradas justificativas científicas para negar-lhe o título de humano. Para a genética, o feto é humano a partir da segmentação. Para a ginecologia-obstetrícia, desde a nidação. Para a neurofisiologia, só quando se forma o cérebro. E para a psicosociologia, quando há relacionamento personalizado. Em suma, o feto é uma espécie de subproletário biológico. Tão reduzido à sua impotência que não tem como protestar ou rebelar-se.
Em muitos casos de aborto, o feto paga pela rejeição que a mulher tem ao homem que a fecundou ou pelos preconceitos que a atemorizam e a tornam tão escrava de conveniências sociais que, paradoxalmente, decide extraí-lo em nome de sua suposta liberdade. Liberdade que teme e da qual foge quando se trata de admitir uma relação adúltera, assumir-se como mãe solteira ou exigir de seu parceiro, ainda que casado com outra mulher, que se assuma como pai face à evidência de uma vida em processo.
Há homens que, confrontados com uma inesperada gravidez, reagem com uma covardia inominável, como se o problema fosse apenas da mulher. E há mulheres coniventes com a omissão masculina, não raro por ter de optar entre o feto e o afeto...
Partilho a opinião de que, desde a fecundação, já há vida com destino humano e, portanto, histórico. Sob a ótica cristã a dignidade de um ser não deriva daquilo que ele é e sim do que pode vir a ser. Por isso, o cristianismo defende os direitos inalienáveis dos que se situam no último degrau da escala humana e social.
O debate sobre se o ser embrionário merece ou não reconhecimento de sua dignidade não deve induzir ao moralismo intolerante, que ignora o drama de mulheres que optam pelo aborto por razões que não são de mero egoísmo ou conveniência social.
Trata-se de mulheres muito pobres que, objetiva e subjetivamente, não têm condições de assumir o filho; de prostitutas que dependem de seus corpos para sobreviver e dar de comer a seus dependentes; de casais que se deparam com uma gravidez imprevista que viria desestabilizar a vida conjugal e familiar; de mulheres mentalmente enfermas, incapacitadas para cuidar de uma criança; ou que engravidam involuntariamente após os 40 anos, quando aumenta a possibilidade de nascer um filho com deficiência.
É a defesa do sagrado dom da vida que levanta a pergunta se é lícito manter o aborto à margem da lei, pondo em risco também a vida de inúmeras mulheres que, na falta de recursos, tentam provocá-lo com chás, venenos, agulhas ou a ajuda de curiosas, em precárias condições higiênicas e terapêuticas. Uma legislação em favor da vida faria este problema humano emergir das sombras para ser adequadamente tratado à luz do Direito, da moral e da responsabilidade social do poder público.
O teólogo González Faus opina que "mais do que o moralista, a existência de situações-limites deve ser contemplada pelo legislador civil, que não está obrigado a assegurar toda a moralidade e sim a convivência pacífica, nem está obrigado a prescrever a heroicidade ou a procurar um "melhor" inimigo do bem, senão que muitas vezes há de contentar-se em evitar o mal maior. E é possível que, nas atuais circunstâncias de nossa sociedade, a descriminalização legal do aborto seja um mal menor." (Este es el hombre, Ed. Cristandad, Madri, 1986, p. 277).
A morte clandestina no ventre elimina qualquer risco à propriedade e à imagem pública do proprietário. Para este, aliás, não há ilegalidade nesta matéria. Basta enviar a gestante a uma clínica particular e tudo se resolve. Mas como ficam as mulheres pobres que não podem ter filhos, senão sob o risco de perderem o emprego e deixarem a família na miséria? São inúmeras as que, para obter trabalho, se vêem obrigadas a esconder que são casadas e a impedir ou interromper a gravidez.
Se os moralistas fossem sinceramente contra o aborto, lutariam para que não se tornasse necessário e todos pudessem nascer em condições sociais seguras. Ora, o mais cômodo é exigir que se mantenha a penalização do aborto. Mas como fica a penalização do latifúndio improdutivo e das causas que levam à morte, por ano, cerca de 26 entre cada 1.000 crianças brasileiras que ainda não completaram doze meses de vida?
A descriminalização não reduz o número de abortos clandestinos. Muitas mulheres continuam a preferir o anonimato, para evitar danos à sua imagem social e/ou à do parceiro. Diminui é o número de óbitos em conseqüência do aborto. Em países onde o aborto não é criminalizado, inúmeras gestantes, ao procurar os serviços sociais decididas a fazê-lo, são convencidas a ter o filho - o que não ocorreria se vigorasse a criminalização.
"No plano dos princípios" - declarou o bispo Duchène, presidente da Comissão Espiscopal Francesa para a Família - "lembro que todo aborto é a supressão de um ser humano. Não podemos esquecê-lo. Não quero, porém, substituir-me aos médicos que refletiram demoradamente no assunto em sua alma e consciência e que, confrontados com uma desgraça aparentemente sem remédio, tentam aliviá-la da melhor maneira, com o risco de se enganar" (La Croix, 31/3/79).
Não se trata, pois, de legalizar o aborto, como se fez com o divórcio. Antes, de impedi-lo e defender os direitos da vida em embrião. Assim, uma legislação em favor da vida deve obrigar o poder público a promover amplas campanhas contra o aborto; esclarecer suas implicações morais, físicas e psicológicas; prever sanções aos empregadores que recusam mulheres casadas ou não dão suficiente apoio às gestantes; criar postos de atendimento às gestantes que pensam em abortar, onde médicos, psicólogos, assistentes sociais e, inclusive, ministros da confissão religiosa da interessada, procurem convencê-la a assumir o filho, demovendo preconceitos; ampliar a rede de Casas da Mãe Solteira, de modo a evitar que as gestantes solteiras sejam induzidas ao aborto por desamparo afetivo, moral ou econômico; assegurar o salário-maternidade e multiplicar o número de creches; criar o sistema telefônico de atendimento às mulheres angustiadas por gravidez imprevista, o SOS Futuras Mães; oferecer ajuda financeira às famílias que adotam crianças rejeitadas por suas mães etc.
Em suma, assegurar o direito à vida do embrião e amparo moral, psicológico e econômico à gestante, bem como prescrever medidas concretas que socialmente venham a tornar o aborto desnecessário. (22.05.07 – MUNDO)

Frei Betto é escritor, autor de "A mosca azul - reflexão sobre o poder" (Rocco), entre outros livros.
Disponível em: http://www.adital.com.br/site/noticia2.asp?lang=PT&cod=27692. Acesso em: 12/10/2010.

ABORTO: CUIDADO OU CADEIA?








Carta capital. 17/10/2008

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O apartheid não morreu

Aqui a discriminação é a lei. Numa África do Sul onde racismo é crime, um povoado se mantém 100% branco e vive como se fosse um país independente. Bem-vindo (ou não) a Orânia

por Felipe Lessa, de Orânia, África do Sul


Quase todos os carros são brancos em Orânia. Já entre os motoristas não existe quase. São todos brancos mesmo. É um povoado de 700 pessoas fundado por brancos e que só aceita moradores brancos. "Viemos atrás do sonho de ter uma comunidade livre e segura. A África do Sul já foi um país de primeiro mundo há algumas décadas, mas infelizmente não podemos mais dizer isso", diz Andries van der Berg, um oraniano de 24 anos.
Andries tem saudade de um tempo que nunca viveu para valer. Tinha só 4 anos de idade quando o apartheid acabou, em 1990. Nos 42 anos que a política de segregação durou, a elite de origem europeia era privilegiada em todas as esferas: tinha os melhores empregos e vivia em bairros nobres com serviços públicos comparáveis aos dos países ricos. Do outro lado dessa muralha invisível estavam 96% da população: negros e mestiços amontoados em periferias ocupando subempregos. Não ser racista era contra a lei, inclusive: o Estado proibia casamentos entre brancos e negros.
Em Orânia os muros também são invisíveis. Não há cancela com seguranças impedindo negros de entrar. Também nem seria permitido. A Constituição sul-africana mais recente, de 1993, transformou o racismo em crime. Se é assim, então, como Orânia é possível? Porque juridicamente esse povoado não é uma cidade. Mas uma empresa. O lugar em si está subordinado a um município de verdade, Hopetown. Não tem prefeito próprio. Mas tem presidente. E os moradores são os acionistas. Ao comprar uma casa lá, você vira sócio. Como qualquer empresa tem liberdade para recusar sócios, Orânia fica com autonomia para decidir quem pode e quem não pode viver lá, como se fosse um governo de verdade.
Isso foi possível porque os fundadores do lugar compraram uma vila operária abandonada no subúrbio de Hopetown - em 1990, logo que o apartheid acabou e Nelson Mandela saiu da prisão. A empreitada custou o equivalente a R$ 1,1 milhão em dinheiro de hoje. Mas isso só valeu pelo terreno, praticamente: eram 240 casas parcialmente destruídas, sem água, luz ou esgoto. "Começamos do nada", diz, orgulhoso, John Strydom, um dos diretores do povoado-empresa.
Empresa não. País. Eles se sentem mais oranianos do que sul-africanos. Como qualquer nação, buscam depender o mínimo possível do exterior. E ter o máximo de autossuficiência econômica. De fato, a maior parte dos serviços e dos alimentos é produzida na própria cidade. Mesmo sem ter nem 15 ruas, Orânia possui bandeira e uma moeda própria: o ora, que vale o mesmo que o rand sul-africano.
É um sistema financeiro engenhoso: você pega seus rands e troca numa casa de câmbio. Ela deixa o dinheiro aplicado. Os rands não são mais seus, a troca já foi feita. Mas você pode sacar os juros depois. Além disso, vários comerciantes dão um desconto de 5% a quem pagar com o ora. É a colaboração deles para criar uma identidade nacional. E para fortalecer a economia local também. Com a moeda local, oraniano gasta com oraniano, não com sul-africano.
"Nosso objetivo é manter o dinheiro dentro da cidade e, com isso, criar empregos", diz Frans de Klerk, o CEO. Não dá para dizer que não deu certo. Em quase 20 anos de existência, foram construídas 3 igrejas, duas escolas, dois museus e uma estação de rádio. E a maior parte dos oranianos tem negócios próprios no povoado, não precisa sair de lá para ganhar a vida.
Mas, cá entre nós, têm de contar com uma mãozinha dos sul-africanos. O posto de gasolina de Orânia, por exemplo, depende dos motoristas negros para sobreviver. Como ele é o único num raio de 15 quilômetros, os habitantes das redondezas abastecem por lá também. Para ter uma ideia, a SUPER viu durante 1h30 só 4 carros com brancos contra 13 com negros. "Sempre passo por aqui e nunca me trataram mal, mas também nunca abriram um sorriso. Lógico, eu estou gastando meu dinheiro no posto. Mas não gosto deste lugar. Nem um pouco", diz a comerciante negra Corina Mathlante.
O isolamento parece não ter fim. Enquanto o país está fervendo por causa da Copa do Mundo, que começa em 11 de junho, o clima em Orânia está frio, até gelado. Sabe como seria se o Brasil sediasse o próximo mundial de curling? É mais ou menos assim que está o clima do povo de Orânia para a copa. "Acho que algumas pessoas vão assistir os jogos pela televisão...", desconversa John Strydom. O negócio ali é atletismo e rúgbi, o esporte tradicional da elite branca.

Tribo de holandeses

O racismo dos oranianos não se limita a um brancos x negros. A questão étnica ali é mais profunda. Tanto que não é qualquer tipo de branco que vive por lá: somente africâneres, os descendentes dos holandeses que iniciaram a colonização do país no século 17 ("orânia" vem de orange, a cor-símbolo da Holanda). Se você for um branco sul-africano descendente de ingleses, que também dominaram a região, não entra.

O fato é que os africâneres dominaram politicamente e culturalmente o país na época do apartheid, mas perderam parte desse poder com a democratização, em 1994. O idioma africâner, um dialeto que veio do holandês dos anos 1600, fazia parte das matérias obrigatórias nas escolas e era número 1 nas universidades. Com a democratização, o inglês tem se tornado dominante no ensino, constituindo também uma segunda língua universal - pela qual as dezenas de etnias negras do país podem se comunicar. "Fomos marginalizados", reclama (em inglês) Carel Boshoff, um dos fundadores de Orânia.
Faz muito mais tempo que os africâneres se sentem marginalizados. Começou quando os ingleses invadiram a praia deles na Áfica do Sul, atrás das jazidas de diamante e de ouro, em 1877.
Os súditos da rainha Vitória expulsaram os colonos descendentes dos holandeses à bala. Aí os africâneres reagiram e pegaram suas terras de volta depois de uma batalha sangrenta. Após muita negociação, um acordo de paz acabou assinado. Pois bem, esse foi só o primeiro episódio. Na virada para o século 20 começaria outra guerra pelo ouro. E os ingleses, com um exército bem superior, massacrariam os africâneres, mandando milhares deles para férias forçadas em campos de concentração.
Se museus existem para relembrar o passado, o de Orânia faz isso com maestria: a maior parte do acervo é composto de carabinas, revólveres e espingardas. São 43. Fora a réplica de cera representando o sofrimento das mulheres nos campos de prisioneiros.

Independência. Ou morte?

Mesmo com uma história de tanta tensão, a relação com o governo é surpreendentemente boa. Prova disso é a visita feita pelo então presidente Nelson Mandela, em 1994, como um gesto de reconciliação entre negros e africâneres. O atual chefe de Estado, Jacob Zuma, também demonstrou interesse em conhecer o povoado. Uma amostra de simpatia, mas também da total falta de receio do governo sul-africano com esses loirinhos que brincam de Banco Imobiliário em seu bairro.
Mas isso não impede Orânia de pensar grande. "Vejo um futuro promissor. Somos uma alternativa para os africâneres e continuaremos crescendo." Crescendo até declarar independência? "Não. Não pretendemos nos tornar uma nação. Mas, se a relação com a África do Sul ficar ruim, será a nossa única opção. Para nos sentirmos seguros, precisamos sentir que pertencemos a algum lugar", diz Boshoff. Mas talvez exista um jeito melhor de saber sobre o futuro de Orânia do que perguntar para os líderes: dar uma volta na piscina pública de lá. É o ponto de encontro dos adolescentes, cheio de casais namorando, moleques fazendo brincadeiras... Lá de trás vem uma garota usando um daqueles óculos tipo persiana, cheia de pose. Na mão um aparelhinho tocando Single Ladies, da Beyoncé. Shantal Williams, 16, não tem nada do jeitão tradicionalista-rural dos africâneres. A menina quer se formar em música - em outra cidade, claro. "Até gosto de morar aqui, mas prefiro lugares de cultura mista, sabe? A gente pode trocar talentos com pessoas diferentes... Aqui é tudo muito igual."


Nome Oficial – Orânia

Localização - África do Sul, a 650 km de Johannesburgo

População – 700

"Independência" (ano da fundação) – 1991

Atividade econômica - Agricultura de azeitonas, pêssegos e figos.

Forma de governo - Empresarial.

Etnia - Africâner.


Para saber mais

The Afrikaners: Biography of a People Hermann Giliomee , University of Virginia Press, 2003.

http://super.abril.com.br/cotidiano/apartheid-nao-morreu-552516.shtml

A PERPETUAÇÃO DO APARTHEID NA ÁFRICA DO SUL

Régis Bonvicino |

A Copa do Mundo que se realiza na África do Sul é evento que reitera, sob muitos aspectos, o modelo de dominação europeu e branco imposto na África do Sul desde a sua descoberta. Poucos se lembram que foi um navegador português, Bartolomeu Dias, quem a descobriu, em 1488, quando sua pequena frota dobrou, pela primeira vez, o cabo que chamou das Tormentas, em seu extremo sul. Dom João II, que almejava chegar a lugares mais remotos, alterou, por essa razão, o nome para Cabo da Boa Esperança. Em linhas rápidas, a colonização desse território foi iniciada pelo holandês Jan Van Riebeeck, que nele se instalou em 1652, sob a bandeira da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais. Van Riebeeck fundou a Cidade do Cabo. Na sequência, calvinistas dos Países Baixos, da Alemanha, da França e da Escócia aportaram no local e não obtiveram sucesso em submeter os negros khoisan a suas atividades agrícolas. Os khoisan foram então quase exterminados pelos europeus, no primeiro genocídio da colônia, que passou às mãos dos ingleses em 1806. Ingleses que derrotaram os bôeres ou africânderes, descendentes daqueles colonos calvinistas. Hoje, o africânder, holandês mesclado com inglês e malaio, é uma das onze línguas oficiais da África do Sul.

Com a rendição dos bôeres, o Tratado de Vereeniging, de 1902, institui então um esboço de apartheid (“separação”, em africânder). Os bôeres obtêm um estatuto especial e aos negros é vedado o direito de voto. É significativo que a palavra apartheid advenha de uma língua forjada pelo colonizador. O calvinismo é a doutrina dos eleitos por Deus. O calvinista acredita que Deus escolheu apenas um grupo limitado de pessoas, dignas, então, da prosperidade. Max Weber explica o sucesso do capitalismo em países como Estados Unidos e Holanda em virtude dele. A discriminação passa, em decorrência, a ser a regra, uma regra inquestionóvel porque divina. Trabalhando muito, o calvinista prova, a si mesmo, que é um dos escolhidos por Deus para o sucesso material – meios justificando os fins. É ação de Deus, pois se Deus trabalha por ele (assim prescreve a doutrina), ele pode concluir que foi um dos eleitos. Os negros não se encontravam entre os “escolhidos”. Os khoisan, no inconsciente histórico, revelaram-se incapazes de disciplina para a agricultura.




A União Sul-Africana foi estabelecida em 31 de maio de 1910. No ano seguinte, a ruptura de um contrato de trabalho, por um negro, já estava tipificada como crime, sancionado com penas cruéis. Embora tenha abolido formalmente a escravidão em 1835, o apartheid foi a maneira encontrada para perpetuá-la. Ele reproduziu, desde o começo, o regime racista colonial. Em 1913 foi editado o Native Land Act (Lei da Terra). Apesar de se constituirem em dois terços da população, aos negros foi concedido o “direito” de permancer com cerca de 10% da terra cultivável. Mestiços não possuíam qualquer direito à terra. Negros só poderiam residir além de suas terras na condição de empregados dos brancos. Hoje, esse panorama foi alterado apenas em termos cosméticos. Há, entre os 45 milhões de habitantes, 19 milhões de sem-terra. Persiste a concentração fundiária baseada na segregação racial. A renda per capita de um negro é de cerca de um salário mínimo brasileiro, a do branco beira os 15 salários mínimos.

Trago à tona algumas leis do apartheid que, agora abolidas, sobrevivem na desigualdade econômica. Trens e ônibus eram segregados, mas ainda hoje não há bom transporte coletivo para todos, ao contrário. Em tese, havia bibliotecas para brancos e negros, mas nunca se construiu uma sequer para os negros. Nos anos 1970, a educação de cada criança negra custava ao Estado um décimo do custo de uma criança branca. A educação superior era vedada aos negros. Além disso, a educação oferecida a eles os preparava para os trabalhos braçais. O caso da África do Sul é o que evidencia com maior nitidez o processo de legalização, permito-me o pleonasmo, legislativa da barbárie. Em 10 de maio de 1994, Nelson Mandela, após décadas de luta e prisão, tomou posse como presidente do país. Criou, na esteira da sucessivas Declarações de Direito, a Comissão Verdade e Reconciliação e promoveu uma Assembleia Nacional Constituinte, que forjou uma nova Constituição. A Comissão da Verdade pouco pôde apurar no que toca à tortura, em nome da “reconciliação”, e, assim, o país possui uma das polícias mais violentas do mundo.
Houve, depois de 1994, e sobretudo neste novo milênio, a apropriação da imagem de Mandela, à sua revelia, pelo capitalismo transnacional. Uma lavagem de imagem. Nahla Nvali, membro da Comissão de Verdade e Reconciliação na África do Sul, observa, em artigo recente, que “ainda hoje persiste a estratificação racial” e que “a transição política pouco fez para enfrentar a distância econômica, que se baseia ao longo das linhas raciais”. A escolha da África do Sul como sede da Copa tem mais a ver com a perpetuação, repito, do apartheid sob a modalidade econômica e igualmente “democrática”, entre aspas mesmo. Sua democracia é incipiente, a corrupção, endêmica, a AIDS, epidêmica, o racismo permance quase intocado, e a construção de estádios de futebol não lhe eram uma prioridade. A FIFA se tornou o cavalo de troia das empreiteiras e de outras empresas da elite branca global e sul-africana, a serviço dessas novas Companhias das Índias Ocidentais. Aqui, ouviremos, nas transmissões esportivas, locutores dizerem que o povo “é, apesar dos anos de apartheid, alegre e acolhedor”, e que, “liberto de seu passado”, o país se reconstrói sob o signo da união racial e da liberdade. E a barbárie será – de novo – ocultada.
http://www.sibila.com.br/index.php/mix/1154--a-perpetuacao-do-apartheid-na-africa-do-sul

domingo, 3 de outubro de 2010

HISTÓRIA DA ÁFRICA DO SUL

ÁFRICA DO SUL: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA

Quando as eleições de 1994 foram realizadas, nascia, naquele momento, uma nova África do Sul. Nelson Mandela, líder negro sul-africano que ficou preso por 27 anos ficou devido ao ideal de acabar com o apartheid, venceu a eleição. Três séculos de soberania dos brancos sobre a maoria negra da população finalmente chegavam ao fim.
Esse novo começo para o país chamado de “Rainbow Nation” - ou, como diz o Arcebispo Desmond Tutu, primeiro arcebispo negro sul-africano, “Rainbow Children of God” - significava, pela primeira vez, que todas as pessoas da África do Sul, independentemente da cor, credo ou sexo, eram iguais. Em 1997, uma constituição inédita garantiu ao povo esses direitos.
Os 300 anos de história sul-africana que precederam essa dramática reviravolta em direção à liberdade e à democracia explicam como tudo deu tão errado em um período de tempo tão longo. Colonizadores europeus brancos de três países lutaram entre si pelo direito de controlar um território vasto que, na opinião de cada um, pertencia a eles. Na mesma época, tribos negras fizeram o mesmo. E os colonizadores ainda travaram batalhas com as tribos que atravessam seu caminho. Foi nessa época que minas de ouro e diamante foram descobertas. Os negros foram trabalhar nas minas, enquanto os brancos ficavam mais ricos.
Para que a história não pareça confusa, é necessário que se fale sobre o papel social e político da África do Sul na História Antiga do mundo.

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Antropologia

O que se sabe sobre o habitante mais antigo do território que mais tarde seria chamado de África do Sul vem de teorias de antropólogos, que o chamam de hominídeo, precursor de espécies mais evoluídas como o homo habilus, homo erectus e homo sapiens. Em 1947, fósseis de hominídeos de três milhões de anos de idade foram descobertos nas cavernas Sterkenfontein Caves, perto de Krugersdorf, a oeste de Joanesburgo.
O homem moderno apareceu no cenário há três mil anos. O povo africano Khoisan, que vivia na região norte de Botsuana, abriu mão da caça para criar gado, atividade que os outros africanos já estavam aprendendo. Eles chamavam a si mesmos de Khoikhoi, o significa homens dos homens, e se referiam aos que permaneceram caçadores como San. Não havia fronteiras naquela época e os dois grupos, Khoikhoi e San, povoaram as terras.

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Colonização da Região do Cabo

Em 1652, quando a Companhia das Índias holandesa se instalou permanentemente na Cidade do Cabo, a colonização não estava em primeiro plano. O navegador português Bartolomeu Dias tinha dado a volta na região do Cabo e chegado a Mossel Bay em 1488, enquanto outro explorador português, Vasco da Gama, tinha descoberto a rota para a Índia, passando pelo Cabo, em 1497. Como a Cidade do Cabo era um porto conveniente para quem vinha e ia para o ocidente, os holandeses enviaram o comandante Jan van Riebeeck para o local, onde ele se desentendeu com os Khoikhois (chamados de Hottentots pelos holandeses). Ele declarou guerra ao povo Khoikhoi e aprisionou seus líderes em Robben Island, dando início ao período histórico de colonização. Mais tarde, van Riebeeck estabeleceu que os brancos eram os colonizadores, criando uma colônia de escravos, cuja maioria era de indonésios.
Os primeiros colonizadores brancos levavam suas vidas em pequenas fazendas na Cidade do Cabo, onde se alimentavam de carne e bebiam vinho. As colônias se espalharam pelas montanhas e chegaram rapidamente aos pastos secos do interior. Com isso, aconteceu uma mudança relacionada à percepção que cada grupo tinha de si mesmo: os colonizadores decidiram se diferenciar de seus irmãos da Holanda e se autodenominaram Boers (palavra que significa fazendeiros) ou Afrikaaners (africanos). As mortes começaram a acontecer quandos os “novos” colonizadores decidiram tomar o que bem entendessem, matando os adultos dos grupos Khoikhoi e fazendo de seus filhos serventes domésticos.
Em 1688, os Hughenots, um grupo de 220 protestantes franceses que tentavam escapar da perseguição religiosa, chegaram ao território e introduziram os conhecimentos para o cultivo da uva.

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A chegada dos Britânicos

Quando os holandeses fecharam a Companhia das Índias em 1795, as forças inglesas tomaram o controle da região do Cabo. Os britânicos devolveram o poder aos holandeses no breve período de 1803 a 1806, mas depois resolveram tomá-lo novamente. Uma das primeiras iniciativas do governo foi atacar o povo Xhosa, que estava enraizado dentro das áreas dos colonizadores brancos.
Quando o coronel britânico John Graham seguiu as instruções de incitar “um grau apropriado de terror” no povoado Xhosa e expulsá-lo de lá, ele foi homenageado em 1812 com uma nova cidade, chamada de Grahamstown.

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As Guerras do Século 19: Luta pelo Poder

Em 1819, para colocar seu selo na região, os britânicos enviaram 4 mil colonizadores, concedendo a eles terras conhecidas como Zuurveld, às margens do rio Great Fish. A vida era cruel e sem perspectivas. Para piorar a situação, eles tiveram que pagar impostos por seus privilégios, o que causou ressentimento em relação ao regime britânico na Cidade do Cabo - o que já havia acontecido com os Boers.
Os britânicos estavam mais interessados em desafiar o estilo de vida dos Boers. Uma série de ordens foi dada para destruí-los. O Decreto 50 de 1828 aboliu o trabalho forçado e a diferença de cor em relação às leis, abrindo o caminho para a abolição da escravidão em 1834.
Os Boers, como resposta, resolveram partir para as terras além do rio Orange, que ainda estavam fora do controle britânico. Esse êxodo em massa ficou conhecido como o Great Trek.
Enquanto isso, outro tipo de revolução estava acontecendo ao norte do rio Thukela, na área que hoje representa a província de KwaZulu-Natal: a tomada do poder pelo exército do reino de Zulu. O reinado de Shaka Zulu (de 1818 a 1828) foi marcado pelas manias do déspota que até hoje intriga os historiadores. Em 1828, Shaka foi assassinado por seu irmão Dingaan, que na época negociava terras com Piet Retief, líder dos imigrantes Boers, também chamados de Voortrekkers. Dingaan ordenou o assassinato de Retief.

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A Batalha de Blood River

Os Boers uniram suas forças sob o comando de Andrius Pretorius, que mais tarde originou o nome da capital da África do Sul. Os Zulus foram vencidos na Batalha de Blood River, uma questão que até hoje toca o orgulho nacionalista dos Afrikaaners. Na década de 1930, os historiadores Afrikaaners reinterpretaram a batalha como um sinal divino de que os descendentes dos Voortrekkers eram pessoas enviadas por Deus que deveriam dominar a África do Sul.
Nessa mesma época, outra guerra foi travada entre os britânicos e os Xhosas, dessa vez na divisa leste do país. O conflito foi tão longo que ficou conhecido como a Guerra dos Cem Anos. Quatro guerras em fronteiras estouraram entre 1819 e 1853, tirando milhares de vidas e deixando a tribo Xhosa arrasada por muitas gerações.
Na colônia britânica de Natal, a segregação racial foi imposta e “reservas nativas” foram estabelecidas, na mesma época em que plantações enormes de cana-de-açúcar foram feitas. A solução para mão-de-obra foi transformar os indianos em escravos, adicionando mais um grupo étnico à turbulenta mistura que já existia na região.
Em 1867, a África do Sul ainda não era considerada uma nação. Quatro colônias regidas por brancos e vários reinos de negros co-existiam. O poder britânico era dominante, mas muitas colônias grandes conseguiram achar suas fontes de poder.

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A Descoberta do Ouro e do Diamante

Dizem que em 1866, o jovem Erasmus Jacobs estava brincando na fazenda de seu pai, perto de Hopetown, quando achou uma linda pedra. Um vizinho quis comprá-la, mas a família não achou que a pedra tivesse valor e acabou dando-a, em vez de vendê-la. A linda pedra de Erasmus era o diamante “Eureka”, de 21,25 quilates, que causou a corrida do diamante em Kimberley. Três anos depois, o mesmo vizinho teve sorte novamente, mas dessa vez ele achou uma pedra maior, com 83,5 quilates, que mais tarde foi chamada de “Estrela da África do Sul”.
Os diamantes foram encontrados em fazendas da região. O processo de escavação deu origem ao Kimberly Big Hole. Mais de 50 mil pessoas vieram do mundo todo em busca da preciosidade. As condições de vida eram horríveis, mas toda vez que a área parecia estéril, alguém encontrava outra mina vulcânica cheia de diamantes.
A propriedade dos diamantes foi motivo de brigas litigiosas. Conhecidas como Grigualand West, as minas foram reivindicadas pelo povo Khoina, que há 70 anos habitava o local. Como as minas estavam nas fronteiras, os governos do estado de Orange Free, da República Sul-Africana e de Cape Colony também queriam uma parte da riqueza. Quando os britânicos chegaram em 1880 e simplesmente anexaram a área, todos discordaram.
Kimberley, considerada o centro da indústria de diamantes, foi dominada por nomes como Cecil Rhodes, Charles Rudd e Barney Barnato, que juntos trabalharam para criar um poderoso cartel, que mais tarde foi consolidado e deu origem à De Beers Consolidated Mines. Hoje, sob o comando do grupo Oppenheimers, a De Beers domina o mercado mundial de diamantes.

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Ouro nas Colinas

A corrida do ouro começou em 1886, quando George Harrison descobriu a camada Main Reef, em Witatersrand. As fazendas das redondezas foram declaradas propriedade pública e uma nova cidade, Johanesburgo, foi criada na região.
Nessa época, o norte tinha assumido o controle da África do Sul, e várias guerras marcaram a luta pelo poder. Em 1979, os Zulus derrubaram as forças britânicas em Isandiwana. Os britânicos, para reagir, derrotaram os Zulus em Ulundi, que hoje é chamada de KwaZulu-Natal.
Quando o Transvaal teve sua república proclamada, estourou a guerra Anglo-Boer, de 1880 a 1881. A segunda guerra Anglo-Boer, que resultou na derrota dos Boers, aconteceu entre 1899 e 1902.

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O Século 20

O território sul-africano foi completamente dominado e os Boers e os britânicos conseguiram se conciliar. Em 1910, A União da África do Sul foi proclamada. Durante o século 20, os Afrikaaners voltaram a dominar o país por um curto período, mas a história registra uma impressionante dificuldade político-social vivenciada pelos negros.
Os brancos começaram a se preocupar quando se depararam com a mudança demográfica dos negros: de pequena minoria nos centros urbanos na época da União, os negros passaram a ser maioria em todas as cidades principais por 40 anos. Os negros foram completamente privados dos seus direitos quando foram expulsos dos sindicatos políticos e comerciais. As leis chamadas de Pass Laws controlavam seu movimento, garantindo que os negros não saíssem das fazendas dos brancos. Graças ao conjunto de leis Land Acts, de 1913 e 1936, a maioria dos negros, que continuou vivendo em tribos, também foi proibida de comprar terras fora das reservas.
As eleições de 1943 e 1948 colocaram o Partido Nacional, composto de brancos, no poder. O partido controlou o país até as eleições de 1994.

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Um Novo Mundo

Com as eleições de 1948, Hendrick Verwoerd e D.F. Malan criaram um mundo novo: o apartheid, ou “separação”. Esta posição política nacional trouxe muitas leis novas. Os negros foram forçados a se sentar em bancos públicos separados, usar entradas de prédios diferentes e ter seus próprios banheiros públicos. No ano seguinte, o decreto Mixed Marriages Act proibiu casamentos entre negros e brancos.
O decreto mais cruel de todos foi o Popular Registration Act, de 1950, que exigia registros de acordo com as classificações raciais. Os negros eram obrigados a carregar um passe permanentemente, impedindo-os de entrar nas cidades. Mais adiante, um grande número de negros foi enviado a áreas chamadas de townships - áreas de segregação racial e grande pobreza, que quanto mais longe dos olhos dos brancos, melhor.
Por 30 anos, o Partido Nacional batalhou para manter o sistema de apartheid, que pregava a censura aos meios de comunicação e a falta de liberdade de expressão. O índice de violência estava aumentando, bem como o número de protestos no país. A África do Sul se transformou em assunto de discussão internacional.

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A Resistência Aumenta

A resistência contra o apartheid culminou nos anos 70, quando Steve Biko, um líder popular do Movimento da Consciência Negra, fez um discurso para estudantes negros e brancos, com a intenção de aumentar o orgulho negro e divulgar o movimento. Biko foi espancado até a morte em uma cela de prisão, mas deixou um legado muito maior do que esperava.
Outro momento horrível da história sul-africana aconteceu em 1976, quando crianças de um colégio em Soweto foram às ruas para protestar contra a imposição de que Afrikaans fosse seu idioma oficial. Centenas de crianças foram mortas por policiais que atiraram, e mais de 600 negros morreram por protestarem contra a chacina.
Nelson Mandela, que na época já estava há nove anos na prisão, tornou-se um herói do movimento, e o Arcebispo Desmond Tutu trabalhou incessantemente por uma solução pacífica. Nos anos 80, violência nas townships já havia se tornado comum. Em 1986, sanções internacionais foram impostas, causando grandes dificuldades econômicas ao país.
A estrada para a liberdade foi finalmente aberta em 1990, quando o presidente F.W. de Klerk fez um discurso significativo diante do parlamento, onde repudiou o apartheid e revogou leis que protegiam a discriminação racial.
O sinal mais simbólico de mudança permanente veio com a libertação de Nelson Mandela, em 1990. Mandela trabalhou com o presidente para mudar a cara do governo sul-africano. Em 1994, o Arcebispo Desmond Tutu liderou o processo de “Verdade e Reconciliação”, ajudando a fechar antigas feridas. No mesmo ano, foram realizadas as eleições diretas, um movimento emocionante que gerou quilômetros de filas de pessoas que queriam fazer a diferença. Nelson Mandela foi eleito, e após sua aposentadoria em 1999, seu vice-presidente, Thabo Mbeki, foi eleito para seguir os seus passos.

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Terceira Eleição Democrática Em 2004

Em 14 de abril de 2004, o Congresso Nacional Africano (ANC) venceu a eleição com 69,68% dos votos. A data escolhida para a Terceira Eleição Democrática da África do Sul para eleger o presidente foi 27 de abril de 2004, para coincidir com a comemoração dos 10 Anos de Liberdade. Em seu discurso, o Presidente Mbeki prometeu solenemente lutar contra a miséria como a parte central do esforço nacional para construir uma nova África do Sul. Nestes dez anos, muitos progressos já foram feitos para melhorar as condições de vida de muita gente e este compromisso ainda continua.

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Última atualização dessa página: 27/07/2010.


http://www.africadosul.org.br/?pg=historia#democratica

NELSON MANDELA: 20 ANOS DE LIBERDADE

Mundo
| ISTOÉ Online | 11.Fev.10 - 09:12 | Atualizado em 03.Out.10 - 07:06



Nelson Mandela: 20 anos de liberdade

No dia 11 de fevereiro de 1990, um dos maiores líderes políticos do mundo era libertado depois de cumprir 27 anos de prisão



O ex-presidente sul-africano Nelson Mandela, herói da luta contra o apartheid, chegou nesta quinta-feira ao Parlamento na Cidade do Cabo para comemorar os 20 anos de sua libertação. Mandela foi ovacionado ao entrar no plenário. O primeiro presidente negro da história da África do Sul estava acompanhado de sua terceira esposa, Graça Machel. Ele entrou no Parlamento por uma porta lateral para evitar os jornalistas. Esta é a segunda vez que Mandela assiste à cerimônia organizada para o discurso à Nação desde a eleição do presidente Jacob Zuma, em maio passado.
Militante mais famoso da luta contra o apartheid, Nelson Mandela virou ícone mundial da reconciliação e do perdão desde que foi libertado no dia 11 de fevereiro de 1990. Muito frágil com seus 91 anos, "Madiba", como é chamado pelos membros de seu clã, limita suas aparições e se expressa apenas por gravações de vídeo, como fez em dezembro, durante o sorteio da Copa do Mundo de futebol, organizada pela África do Sul. Sua libertação em 1990, depois de passar 27 anos nas celas do regime segregacionista, acelerou a queda do apartheid. Quatro anos mais tarde, tornou-se o primeiro presidente negro da África do Sul, eleito democraticamente.
"Um ícone mundial da reconciliação". Esta definição do arcebispo anglicano Desmond Tutu resume o principal legado de Mandela: transformar, sem rancores, um país desunido em uma democracia multirracial e estável. Mandela nasceu no dia 18 de julho de 1918 na região de Transkei no seio de um clã real. Seu pai o chamou Rolihlahla, "o que traz problemas", em xhosa. Um mestre acrescentou o nome Nelson. Mandela manifestou muito cedo um espírito rebelde e, dessa forma, foi expulso da universidade negra de Fort Hare por uma briga sobre a eleição de representantes estudantis.
Em Joanesburgo, o estagiário de advogado, aficcionado pelas mulheres e pelo boxe, luta no Congresso Nacional Africano (ANC) e co-funda a Liga da Juventude da ANC. Frente à um regime que institucionaliza o apartheid em 1948, toma as rédeas do partido. Detido em várias ocasiões, Mandela é julgado pela primeira vez por traição e absolvido em 1956. Um ano depois, preside o ANC quando, proibido em 1960, inicia a luta armada. Detido, é julgado com o núcleo dirigente do ANC por sabotagem e conspiração contra o Estado no processo de Rivônia (1963-64).
Mandela é condenado à prisão perpétua, mas proclama seu desejo: "Meu ideal mais querido é o de uma sociedade livre e democrática em que todos vivam em harmonia com igualdade de oportunidades. Um ideal pelo qual estou disposto a morrer". Na prisão de Robben Island, na Cidade do Cabo, Mandela inspira seus companheiros. A partir de 1985, o regime do apartheid, asfixiado pelas sanções internacionais e pela incansável luta interna, inicia contatos secretos. No dia 11 de fevereiro de 1990, o "preso 46664" aparece como homem livre junto com sua segunda esposa. Logo retoma as negociações. O êxito da transição, negociada com o último presidente do apartheid, Frederik de Klerk, será premiado com o Nobel da Paz em 1993. Eleito triunfalmente nos primeiros comícios multirraciais, no dia 27 de abril de 1994, Mandela expressa no seu discurso sua vontade de construir uma "nação arco-íris em paz consigo mesma e com o o mundo".
Adorado pelos negros, ganha pouco a pouco o afeto dos brancos, pasmos por sua falta de amargura, simbolizada em 1994 pela camiseta da seleção nacional de rugby, esporte emblemático dos antigos senhores brancos, que Mandela colocou na final do Mundial, vencido pelos Springboks sul-africanos. O episódio virou filme, "Invictus", dirigido por Clint Eastwood e protagonizado por Morgan Freeman e Matt Damon.


Em 1998, o dia em que completou 80 anos, "Tata" (avô) casou-se com Graça Machel, viúva do presidente moçambicano, 27 anos mais jovem. Um ano depois, abandona a presidência e se afasta da vida pública. Leal ao partido ANC, evita se posicionar politicamente, exceto sobre a luta contra a Aids. A doença é um tabu quando organiza, em 2004, o primeiro de uma série de concertos mundiais beneficentes. Dois anos depois anuncia publicamente que seu filho morreu de Aids.

África do Sul: 20 anos depois

A libertação de Nelson Mandela, em 11 de fevereiro de 1990, precipitou a queda do apartheid e abriu caminho para a instauração da democracia na África do Sul. Vinte anos depois, o país continua lutando contra enormes desigualdades e a impaciência que domina os bairros pobres. Em 1990, "a esperança era enorme, pensávamos que era o início de uma nova era. Este otimismo diminui muito", estima Moeletsi Mbeki, do Instituto Sul-Africano de Relações Internacionais. Do ponto de vista político, a mudança é radical. As leis de segregação foram abolidas, a democracia multirracial está consolidada e o país adotou uma das constituições mais liberais do mundo.
Desde 1994, o Congresso Nacional Africano (ANC), partido de Mandela, venceu com folga todas as eleições. A antiga formação de combate ao regime de dominação branca defende a reconciliação, e apesar de suas raízes históricas na esquerda, se esforça para tranquilizar o mercado financeiro. Esta estratégia permitiu que o país avançasse com forte crescimento até o ano passado, transformando a África do Sul no gigante econômico do continente e permitindo a criação de programas sociais que hoje beneficiam 13 dos 48 milhões de sul-africanos. Por outro lado, o processo de redistribuição de renda não foi tão bem sucedido, e os excluídos do antigo regime apenas melhoraram um pouco sua situação atual.
Apesar da emergência de uma classe média negra, chamada de "os diamantes negros", a grande maioria da população ainda sofre com o desemprego e a pobreza. Segundo um relatório recente divulgado pelo governo, as disparidades não param de crescer. A renda mensal média dos negros aumentou 37,3% desde 1994. No caso dos brancos, porém, o salto foi de 83,5%. Embora o governo tenha melhorado o acesso à água e à energia elétrica, ainda há muito a fazer nos enormes subúrbios do país, onde 1,1 milhão de famílias ainda vivem em barracos. "O ANC triunfou onde pensava que fracassaria: na gestão de uma economia moderna", destacou Frans Cronje, do Instituto Sul-Africano de Relações entre Raças. "Mas os setores considerados seus pontos fortes - a melhoria das condições de vida, a educação e a luta contra a criminalidade - são um fracasso".
Em consequência, "a cólera nas comunidades negras pobres aumenta rapidamente, e os resultados do partido no poder decepcionam cada vez mais", acrescentou. Consciente destas tensões, o chefe do ANC e atual presidente, Jacob Zuma, fez uma campanha eleitoral no ano passado dirigida diretamente aos mais pobres. Nos meses que se seguiram a sua chegada ao poder, em maio, os "townships" o lembraram de suas promessas, com manifestações violentas para denunciar a corrupção e a ineficácia do poder público local. O presidente deve aproveitar o vigésimo aniversário da libertação de Nelson Mandela para reafirmar sua determinação de transformar o país, em um discurso à nação pronunciado no Parlamento.

Homenagem

O presidente da Fifa, Joseph Blatter, enviou uma mensagem em vídeo ao ex-presidente sul-africano Nelson Mandela, que comemorou, nesta quinta-feira, 20 anos de sua libertação da prisão na África. O dirigente afirmou que o famoso estadista é o "maior símbolo da humanidade africana".
Personalidade maior da África, Mandela foi libertado do seu cárcere em 11 de fevereiro de 1990, depois de ficar 27 anos preso. No vídeo enviado, Blatter lembra a importância que a influente personalidade tem para a Copa do Mundo de 2010, torneio que começa em 11 de junho e será realizado na África do Sul. "Você (Mandela) fez mais do que podia por seu país e seu continente, dedicou sua vida à aplicação dos direitos humanos e à democracia e liderou uma luta interminável para a libertação não só da sua gente, os sul-africanos, mas de toda a humanidade", ressaltou o mandatário da Fifa em um trecho da sua mensagem.
"Com este mesmo espírito, sua jovem nação realizará um grande torneio, com determinação e dignidade", reforçou Blatter, que ressaltou: "Acreditamos que a Copa do Mundo pode contribuir para o legado que você queria que ficasse para o seu país". Em nota publicada em seu site oficial nesta quinta-feira, a Fifa destacou que a "libertação de Mandela, após 27 anos de cárcere, abriu também as portas para a celebração das primeiras eleições democráticas da África do Sul". A entidade ainda lembrou que, em maio de 1994, a famosa personalidade se tornou o primeiro presidente da história sul-africana que foi eleito de forma democrática.
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DIAMANTES NEGROS





CARTA DE JOANESBURGO

COMO O PARTIDO DE NELSON MANDELA CRIOU UMA ELITE NEGRA NA ÁFRICA DO SUL



DANIELA PINHEIRO


A três meses da Copa do Mundo, o recém-reformado aeroporto de Joanesburgo já dava os sinais da agitação que está por vir. Corredores apinhados de turistas, longa espera por táxis e uma multidão que se acotovela nos quiosques da Fifa atrás de um broche, de uma bandeirinha ou da mascote do evento, um leopardo verde e amarelo. Na livraria do terminal de desembarque, numa manhã recente, a fila do caixa serpenteava pelo corredor porque havia apenas uma balconista. Um homem alto, gordo e de cabelo comprido se dirigiu a ela com passos duros, arrastando pelo braço um jovem negro com a barba por fazer e pulôver puído. "Esse homem roubou esses seis dvds!", ele berrou. "Eu o vi saindo com isso dentro da blusa! Chamem a segurança!"

Em um tom de voz contido, o negro dizia estar só olhando os filmes, ao que o loiro o desmentia. Ficaram alguns segundos no bate-boca até o acusador chamar os atendentes aos berros. Foi quando o outro falou: "Você está dizendo isso porque eu sou preto, é?" Alguns clientes desistiram de suas compras e outros permaneceram petrificados. Os cerca de dez funcionários da loja, todos negros, olhavam a cena com desdém.

A mulher do caixa, enfim, examinou os dvds. Colocou-os em cima do balcão e chamou o próximo cliente. O sujeito que parecia encarregado da segurança ficou cochichando com um colega. Outra atendente nem interrompeu a arrumação das estantes. Percebendo o hiato de providências, o jovem que pegara os dvds saiu da loja e desapareceu. O loiro, estupefato, comentou com outro branco: "Você viu como os funcionários não fizeram nada? É de propósito, eles são assim. Um protege o outro. Esse país acabou, não tem mais jeito."

O país onde será disputada a Copa é um dos maiores exportadores de minérios do mundo. Tem um Produto Interno Bruto de 278 bilhões de dólares (o do estado de São Paulo é de 490 bilhões). Conta com uma população de 49 milhões de habitantes (São Paulo tem 41 milhões), dividida entre 80% de negros, 10% de brancos, e outro tanto de mestiços e asiáticos.

Os negros pertencem a etnias e tribos que têm línguas, costumes e religiões diversas, como a xhosa, a zulu, a ndebele, a swazi, a tsonga e a venda. Já os brancos vieram em sua maioria da Holanda e da Inglaterra. Os asiáticos têm origem indonésia e indiana. A maioria dos sul-africanos, mesmo os mais pobres, fala inglês e pelo menos outras três línguas e dialetos. A maioria da população é cristã, mas integra uma miríade de igrejas e designações protestantes e pentecostais, por vezes combinadas com religiões autóctones.



Quando Nelson Mandela foi eleito presidente em 1994, ele conclamou os sul-africanos de todas as origens a formar uma "nação arco-íris", na qual a raça deixaria de ser um fator de distinção social e a renda seria distribuída de maneira mais equânime. Desde então, porém, o seu partido, o Congresso Nacional Africano, implementou uma política baseada fortemente na cor da pele. E a concentração da riqueza aumentou.

Catapultada por ações afirmativas, e por negociatas nascidas no interior do governo e da máquina do Estado, uma pequena elite negra emergiu. Os brancos continuam a controlar a vida econômica e financeira, se sentem acuados pelos "diamantes negros", como são chamados os novos ricos, e começam a falar em "racismo às avessas". Há três anos, a África do Sul superou o Brasil no índice de desigualdade social e se tornou o segundo pior no ranking mundial, atrás da Namíbia.

O desemprego atinge 40% da população, mais que o dobro do registrado há duas décadas. Nas áreas rurais, 60% dos negros não têm ocupação. O número de pessoas que sobrevive com menos de 1 dólar por dia também duplicou nos últimos vinte anos. Um terço da população continua sem saber ler ou escrever. O índice de repetência aflige 70% das crianças negras. Com a maior epidemia de Aids do planeta (5,8 milhões de contaminados) e índices de criminalidade assustadores, a expectativa de vida dos sul-africanos caiu de 63 para 49 anos na última década.

"Os ricos ficaram mais ricos e os pobres mais pobres", comentou numa tarde de janeiro o professor Patrick Bond, da Universidade de KwaZulu-Natal. "A oferta de serviços de água, eletricidade, saneamento, saúde e educação está, em geral, pior e mais cara para o povo do que durante o apartheid", afirmou.

Apesar disso, o Congresso Nacional Africano não perde eleições há dezesseis anos. Mandela é considerado unanimemente o herói nacional por excelência. E pesquisas atestam que a aprovação do atual presidente, Jacob Zuma, é de 77%. Mais de 13 milhões de sul-africanos dependem de benefícios do governo para viver. Eles contemplam negros com mais 63 anos, mulheres com mais de 60, portadores do vírus da Aids, adolescentes de até 15 anos e deficientes físicos. Água e eletricidade são subsidiadas até certo patamar de consumo. Mais de 2 milhões de casas populares foram construídas nos últimos quinze anos (a promessa era de 10 milhões de casas).



Situado na rota comercial para as Índias, o sul da África foi colonizado por holandeses, aos quais vieram se juntar flamengos, alemães e franceses. Foram eles que, a serviço da Companhia das Índias Ocidentais, haviam montado um posto de abastecimento para suas fragatas, em meados do século xvii, e deram origem aos africâneres, chamados pejorativamente de bôeres. Desde o seu estabelecimento na região, travaram inúmeras disputas com os nativos por terra e gado. Ainda que os africâneres tivessem se apropriado de boa parte do território, as tribos nativas permaneceram independentes. Os escravos vinham da Indonésia, colônia holandesa.

Em 1860, no quadro das disputas imperialistas europeias, os ingleses desembarcaram com artilharia pesada, canhões e soldados para dominar o sul da África. Entraram em conflito com os africâneres e os nativos. Os xhosas resistiram por mais de dez anos e os zulus, em uma batalha sangrenta, chegaram a vencer os britânicos. Vinte anos depois, foram definitivamente derrotados. Os ingleses trouxeram escravos da Índia.

Nessa época, um jovem brincava no jardim de sua casa quando achou uma pedra enorme e brilhante. Era um diamante de quase 22 quilates. No ano seguinte, um pastor encontrou um de 87 quilates. O feito provocou uma migração em massa. Em menos de dois anos, mais de 50 mil pessoas chegaram à região.

Foi quando três ingleses - Cecil Rhodes, Charles Rudd e Barney Barnato - se embrenharam na exploração de minas de pedras preciosas. Começaram alugando bombas de água para os escavadores, e pouco a pouco foram adquirindo pequenas cotas nos lucros. Assim nasceu a De Beers, hoje sob o comando do grupo Oppenheimer, que há quase 130 anos domina o mercado mundial de diamantes.

Com o território dominado, africâneres e britânicos se entenderam e proclamaram a União Sul-Africana. Foram promulgadas as primeiras leis de segregação racial, como o passaporte que restringia o ir e vir dos negros e os proibia de comprar terras fora das reservas tribais. Mas foi só no final da década de 1940, quando o Partido Nacional ganhou as eleições, que se montou o regime do apartheid, da separação racial. O casamento inter-racial virou crime. As escolas e bairros foram divididos. Os negros perderam o direito de votar, ter propriedades e de frequentar praias, piscinas, cinemas e hospitais destinados aos brancos. O Partido Nacional criou também os bantustões - dez nações tribais pretensamente autônomas, instaladas em áreas descontínuas correspondentes a apenas 13% do território nacional.

No livro The Afrikaners: Biography of a People [Os Africâneres: Biografia de um Povo], o historiador Hermann Giliomee coloca a seguinte questão: como um povo educado no Iluminismo e na piedade cristã edificou uma nação com base na exploração racial? A resposta, diz ele, seria a vontade dos africâneres em preservar a identidade. Nas colônias que se tornaram independentes a partir do século xix, os europeus derrotados desenvolveram três estratégias: voltaram às metrópoles, se acomodaram ao novo poder ou então continuaram mandando, por meio dos governantes em exercício. Na África do Sul, os africâneres foram minoria populacional e classe dominante por quase 350 anos. Não se consideravam um poder exterior porque não tinham para onde retornar. A integração racial, no seu modo de ver, significava suicídio.

A África do Sul lembra o Brasil. Joanesburgo é uma metrópole parecida com São Paulo. Pretória é um centro governamental como Brasília. E a Cidade do Cabo, com suas montanhas à beira-mar evoca imediatamente o Rio. Aqui, 50% da população é composta por negros e pardos, que engrossam a base da pirâmide social, em oposição aos brancos que dominam o topo. A semelhança entre os povos também é grande.

Como a maioria dos brasileiros, os sul-africanos são expansivos, alegres e falam alto.

Há detalhes diferentes. Nas áreas ricas das grandes cidades sul-africanas as ruas são mais limpas que as do Leblon ou dos Jardins, é raro ver pichação em muros, os prédios são bem conservados, a frota de transporte público parece nova. E há disparidades significativas: não há no Brasil um restaurante como o 8@The Towers, no bairro de Sandton. Ele é um ponto de encontro dos diamantes negros de Joanesburgo.

Da varanda do restaurante, via-se a frota dos clientes: um Hummer, três bmw e dois Jaguar. Na parede principal, lia-se "Veuve Clicquot" em letras garrafais. Os garçons, assim como 90% dos frequentadores, eram negros e tinham a cabeça raspada. Os fregueses estavam de terno escuro com gravata rosa ou vinho. As mulheres usavam saltos altíssimos, perucas de cabelos lisos e vestidos curtos, colados em corpos torneados a alface e malhação.

Sentados em um sofá baixo, um casal pediu a segunda garrafa de Dom Pérignon. Aos 25 anos, Lungu (que não quis dizer o sobrenome) disse ser montador de filmes para a televisão. A moça, praticamente deitada em seu colo, também não quis se identificar, mas informou ser uma "modelo muito famosa". Novelas e seriados das emissoras de tevê retratam os novos ricos como hedonistas profissionais. Eles sempre aparecem bebendo uísque doze anos ou conhaque, usando grifes de luxo, jogando golfe ou dirigindo carrões importados. Quase nenhum trabalha.

Lungu contou que seu tio havia sido guarda-costas de um "importante membro do cna" e que a família havia entrado no ramo de exportação depois do fim do apartheid. Durante o regime viviam em Soweto, a cidade negra no subúrbio de Joanesburgo, onde seu pai trabalhava como motorista e a mãe era dona de casa.

"Essa insistência de ficar falando em problemas de raça na África do Sul é coisa dos brancos", disse Lungu enquanto a modelo se servia de mais um pouco de champanhe. "Isso é um problema que ficou para trás. Eu não tenho problema algum com raça. Os brancos é que têm." Em cima da mesa, um jornal estava aberto na página de uma notícia impensável até pouco tempo atrás: a foto de uma trombada entre uma Ferrari e um Lamborghini, cujos donos, e não os motoristas, eram negros.

Havia apenas duas mesas ocupadas no 8@The Towers por brancos e nenhuma com brancos e negros. Na maioria dos restaurantes ainda é assim. A não ser que o encontro seja uma reunião de trabalho, negros e brancos frequentam o mesmo espaço, mas não se misturam. Casais multirraciais são raríssimos. Em vinte dias, vi dois. Em um deles, a moça era australiana.



Fundado em 1912, o Congresso Nacional Africano foi o primeiro partido a se propor a representar a maioria negra. Reunia uma parte das elites tribais, intelectuais brancos contrários à segregação racial existente e uma classe média negra formada por advogados, professores, comerciantes, médicos e engenheiros. Não era um partido de base popular, que se organizava nos sindicatos. Quando o Partido Nacional aprofundou a diferenciação salarial nas indústrias, em detrimento dos negros, as organizações operárias, com o Partido Comunista à frente, se aproximaram do cna. Mas, até o final dos anos 40, o partido não tinha maior expressão.
Uma nova geração de líderes, formada por Nelson Mandela, Oliver Tambo e Walter Sisulu deu vida nova ao partido ao criar a sua Liga da Juventude, que atuava nos sindicatos e fazia agitação nas cidades usando táticas de desobediência civil usadas por Mahatma Gandhi na Índia. Em 1955, o cna aprovou o documento que orientou a sua luta durante os próximos quarenta anos, a Carta da Liberdade. Ele declarava que a África do Sul "pertence a quem nela vive, negros e brancos, e que nenhum governo pode proclamar sua autoridade com base na justiça, a não ser que esteja baseado na vontade do povo."

O governo branco reagiu acusando o partido de ser comunista e passou a prender e processar os seus líderes. Em1960, uma manifestação pacífica para protestar contra a obrigatoriedade de os negros portarem passaportes internos foi reprimida pela polícia com selvageria - 67 pessoas, entre elas dez crianças, e todas negras, foram mortas a tiros.

Colocado na ilegalidade, e integrando a vaga terceiro-mundista que se espalhou pelas colônias africanas, o cna adotou a luta armada. Formou-se o Umkhonto we Sizwe (A Lança da Nação), o braço armado do partido, que tinha como objetivo "revidar com todos os nossos meios e forças em defesa do nosso povo, do nosso futuro e da nossa liberdade". Um dos seus dirigentes era Nelson Mandela. Em um ano e meio, a nova organização fez mais de 200 atos de sabotagem (sem vítimas fatais). De seu lado, o governo instituiu a pena de morte para conspiração e sabotagem, e tornou legal a prisão por até noventa dias sem necessidade de acusação formal.

Mandela foi preso e, com outros sete líderes, foi condenado à prisão perpétua no presídio da ilha Robben. Boa parte dos dirigentes do cna partiu para o exílio na Suazilândia, Lesoto e Zâmbia, onde montaram campos de treinamento armado, em parte financiados pela União Soviética. Mesmo assim, internamente, a mobilização contra o apartheid prosseguiu, organizada por operários, estudantes e universitários com pouco ou nenhum contato com os líderes exilados. Da prisão, Mandela enviou uma mensagem à militância: "Tornem esse país ingovernável."

A África do Sul, progressivamente, de fato se tornou ingovernável. Graças às denúncias, à propaganda e às ações políticas do cna no exterior, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, o regime do apartheid passou a ser visto como moralmente funesto. Com base nesse sentimento, grandes empresas e conglomerados multinacionais foram obrigados a limitar o comércio com o governo do Partido Nacional. A África do Sul não podia participar de olimpíadas nem de Copas do Mundo de futebol. Atos públicos, concertos de rock, boicotes a quem contribuía com o apartheid (foi o caso da Land Rover, que fornecia furgões à polícia sul-africana) e abaixo-assinados reivindicavam a liberdade de Mandela e o fim do apartheid.

Nesse aspecto, nenhum movimento de libertação nacional foi tão bem sucedido, a partir dos anos 70, quanto o Congresso Nacional Africano - se compararmos, por exemplo, à Organização para a Libertação da Palestina, a olp de Yasser Arafat. Regionalmente, o governo sul-africano também sofreu revezes: na guerra civil em Angola, foi derrotado pelas tropas cubanas e subsaarianas. A África do Sul havia se tornado uma ilha. E dentro da ilha, as manifestações antirracistas só faziam aumentar.



Em uma quarta-feira de fevereiro, os jornais noticiavam nada menos do que dezesseis manifestações violentas em favelas sul-africanas. As imagens de pneus queimando, moradores correndo e a polícia armando barricadas lembravam as dos conflitos da época do apartheid. Os manifestantes pediam água, luz e saneamento. Como o governo ampliou o acesso à eletricidade sem investir no setor elétrico, os apagões são frequentes. Recentemente, havia sido autorizado um aumento de 25% nas tarifas. Como a inadimplência é alta, a energia é cortada com frequência.

Elias Motsoaledi foi um militante do Congresso Nacional Africano assassinado em 1994. Hoje ele dá nome a uma das 182 favelas ao redor de Joanesburgo. Ali, vivem 30 mil pessoas em barracos construídos com telhas de alumínio e pedaços de madeira sobre chão de terra batida. Em um início de manhã, Cat Qobongwane, de 28 anos, que mora há sete em Elias Motsoaledi, usava uma camisa polo listrada de vermelho e azul, bermuda cáqui e botas creme com meias até a canela. Ele é magro, baixo e cultiva um cavanhaque à D'Artagnan.

O esgoto corria a céu aberto, havia lixo em terrenos baldios e algumas crianças soltavam pipas. "Os políticos só aparecem às vésperas das eleições", disse. Ele explicou que a comunidade era "autogovernável. Cada casa tem um apito. Se há algum crime, tocamos o apito e as outras pessoas vêm. Problemas, resolvemos por aqui mesmo."

Outros moradores também faziam as vezes de guias para turistas com máquinas fotográficas e filmadoras, levados à favela por motoristas contratados em hotéis de luxo, que cobram 180 reais por um "passeio turístico a Soweto". (No Rio, uma visita à Rocinha custa 100 reais.) Na porta de uma das quatro casas que ocupavam um pequeno terreno, cinco mulheres conversavam. Uma delas amamentava um bebê. Cat insistiu para que eu entrasse na casa de uma delas para "conhecer um barraco por dentro". As mulheres não disfarçaram o desconforto. Quando ele chamou pela dona, ela bufou e gritou palavras em zulu.

Era uma construção de dois cômodos, com paredes de madeira e restos de papelão, e carpete fazendo as vezes de chão, onde moravam três adultos e cinco crianças. Havia um fogão a gás, uma fruteira com uma dúzia de batatas escuras e baldes com água. No outro cômodo, um colchão de casal estava abarrotado de sacolas, caixas e pacotes que chegavam quase no teto. Ao lado, uma bacia, onde todos tomavam banho. A mulher disse que estava bem, ali. "O governo está prometendo melhorias. Muita coisa já ficou melhor, eu vou esperando", disse.

A intenção do governo é que cada quatro barracos de uma favela dividam um tanque com água encanada e um sanitário com descarga. Em muitas delas, existe a torneira, mas não o encanamento. A privada fica em uma casinha de madeira que lembra uma cabine telefônica, com uma chave pendurada na porta. O chão era de terra batida e, em vez de papel higiênico, havia pedaços de jornal rasgados. Aquele era partilhado por 23 pessoas.

Elias Motsoaledi estava sem eletricidade. Ao constatar a imensa quantidade de ligações ilegais, o governo mandou cortar todo o fornecimento de energia. À noite, os moradores se viravam com velas, lampiões a parafina e lanternas.

Mesmo não sendo o voto obrigatório, quase todos os moradores tinham título de eleitor e votavam no cna, disse Cat Qobongwane.

Perguntei se ele se incomodava com o fato de a vida dos negros ligados ao governo ter melhorado muito mais do que as dos moradores de favelas. "Eu vou achar ruim que um negro ficou rico? Pelo contrário, eu também quero ficar", disse. Andando para a entrada da favela, ele continuou: "Mas se continuarem a nos deixar sem luz, eles vão ver o que vai acontecer nas próximas eleições." Despedimo-nos e ele me pediu 70 reais. Explicou: "Isso faz parte do acordo com todos que moram aqui. O turista vê a casa das pessoas, paga e o dinheiro vai para a comunidade. Só fico com 5%."

No final de março, depois de mais um protesto, o governo religou a luz, mas informou que, se alguma ligação clandestina fosse descoberta, o fornecimento seria interrompido novamente. Na mesma semana, noticiou-se mais um escândalo: a Eskom, a empresa estatal elétrica, mantinha contratos irregulares com 138 empresas privadas para as quais fornecia energia a preços baixíssimos.



Às vésperas de completar 92 anos, Nelson Rolihlahla Mandela é o político vivo mais respeitado do mundo. Na África do Sul, só setores da extrema esquerda e uns poucos africâneres lhe fazem restrições. De uma linhagem aristocrática, ele perdeu o pai ainda criança e foi morar na tenda do chefe de sua tribo, os thembu. Foi o primeiro de sua família a ir à escola, uma instituição privada que atendia a realeza tribal. Era um aluno aplicado, metódico e um orador nato.

Mandela renunciou à liderança de seu clã quando soube que um casamento lhe havia sido arranjado. Expulso da faculdade por ter se envolvido em um boicote contra a política universitária do governo, mudou-se para Joanesburgo, onde trabalhou numa imobiliária e terminou o curso de direito por correspondência. Ali conheceu Walter Sisulu, com quem fundou o primeiro escritório negro de advocacia do país. O prédio onde trabalharam corre o risco de ser demolido até abril para dar lugar a um estacionamento. Sisulu o convenceu a militar no Congresso Nacional Africano.

Mandela tinha características que o diferenciavam dos líderes do partido. Além do carisma e da modéstia, deixava transparecer uma ausência de qualquer sentimento de vingança em relação aos brancos. Demonstrava uma confiança inabalável em si próprio, tinha o dom de ouvir e uma memória prodigiosa. Tais atributos o levaram à liderança do partido e, depois de passar por um treinamento militar na Argélia e na Etiópia, à coordenação da guerrilha do cna. Depois de quinze meses de perseguição, foi capturado e condenado à prisão perpétua por atividades subversivas.

O prisioneiro passava o tempo entre trabalhos forçados, leitura e meditação. Era autorizado a receber visitas apenas a cada seis meses. Suportou as frequentes prisões da mulher e a morte mal explicada, em um acidente de carro, de seu filho do primeiro casamento. Casou-se três vezes. A primeira com Evelyn Ntoko Mase, da qual se divorciou em 1957, depois de treze anos de casamento, e com quem nunca mais teve contato. Em seguida, conheceu a assistente social Winnie Madikizela, 18 anos mais jovem, com quem ficou por 37 anos, sendo que quase três décadas se relacionando através do vidro da prisão da ilha Robben. O casal se divorciou em 1996 depois que divergências políticas e pessoais vieram a público. Em seu octogésimo aniversário, Mandela casou-se com Graça Machel, viúva de Samora Machel, líder da independência e primeiro presidente de Moçambique.

O movimento para sua libertação tomou proporções mundiais e a frase "Free Mandela" estampava broches, camisetas, agendas, bandeiras e guardanapos. Quando sua casa foi atacada pela polícia, congressistas norte-americanos se cotizaram para reconstruí-la. Seu aniversario de 70 anos, quando ainda estava preso, foi comemorado em comícios combinados em mais de vinte países.

O governo branco se reuniu com Mandela em 47 ocasiões. Por seis vezes propôs libertá-lo em troca do compromisso do cna de abandonar a luta armada. Recusou todas. "Não posso e não farei nenhuma concessão num momento em que eu e meu povo não somos livres. A sua liberdade e a minha não podem vir separadas", escreveu em 1985, numa carta a sua filha. Quem cedeu foi Frederick de Klerk. Em 2 de fevereiro de 1990, o presidente anunciou à estarrecida tribo branca que as coisas nunca mais seriam como antes. Nove dias depois, Mandela foi solto.

Para o historiador Allister Sparks, a libertação de Mandela, a legalização e a desmontagem do apartheid foram uma "revolta negociada". Na época, o Salomon Brothers, o grande banco americano de investimentos, classificou o processo como "o mais substancial realinhamento de poder político, militar, social e econômico jamais acertado numa mesa de negociações, em lugar do campo de batalha, incluindo o Oriente Médio, a Europa Oriental e a ex-União Soviética". Anos antes da saída de Mandela da cadeia, dirigentes do cna e do Partido Comunista se encontravam regularmente com diplomatas americanos que serviam na África do Sul.

Mas houve outras cláusulas na "revolta negociada". Elas me foram expostas pelo economista Michael Kahn, um dos diretores do Conselho de Pesquisas em Ciências Humanas, durante um almoço na Cidade do Cabo: "O apartheid só acabou quando os brancos tiveram a certeza de que nada mudaria para eles, como de fato ocorreu." Na transição, acertou-se que o ministro das Finanças e o presidente do Banco Central do governo do apartheid seriam mantidos durante o mandato de Mandela. O cna também concordou que De Klerk fosse o vice-presidente. E garantiu o direito à propriedade privada (para evitar a desapropriação das terras dos brancos, como havia acontecido no Zimbábue) e se comprometeu a honrar as dívidas interna e externa e os empréstimos junto ao Fundo Monetário Internacional. Tudo foi cumprido.



Num artigo publicado em piauí, intitulado "Hegemonia às avessas", o sociólogo Francisco de Oliveira traçou um paralelo entre os governos do Congresso Nacional Africano e do Partido dos Trabalhadores. Ambos expressariam a dificuldade das classes dominantes dos dois países em exercer o poder diretamente. Só os representantes dos oprimidos, pt e cna, teriam autoridade política para tanto, com o objetivo de manter o sistema econômico e político. Ambos precisaram renegar partes significativas da sua história. Desenvolveram simultaneamente políticas assistenciais de compensação, enquanto garantiam a continuidade macroeconômica. Tornaram-se, assim, partidos da ordem.

Se a Carta à Liberdade foi o resumo das aspirações do cna durante quase meio século, o Programa de Desenvolvimento e Reconstrução representou o projeto a ser implantado quando ele chegasse ao poder. Mandela sintetizou o programa em seu slogan de campanha: "Uma vida melhor para todos." O plano previa a construção de milhares de casas populares, hospitais, escolas, a criação de empregos e a estatização das minas e dos bancos do país. "Era o desenho de uma sociedade socialista com a riqueza distribuída entre a maioria, que era a dos menos favorecidos", explicou-me Patrick Bond, um dos seus autores.

O Programa, no entanto, não saiu do papel. "Um dia, o governo apareceu com outro programa chamado Crescimento, Emprego e Redistribuição, e enterrou para sempre o projeto original", disse Bond. "Desde então, o cna nunca mais foi o mesmo." O novo plano previa privatizações, redução do déficit fiscal e juros altos. "Durante muitos meses, executivos do Banco Mundial faziam visitas à África do Sul. O fmi condicionou um empréstimo ao país ao compromisso de uma política salarial austera e corte de custos", afirmou o professor.



Foram lançados nos últimos meses quatro cartapácios sobre a história do pós-apartheid escritos por jornalistas e historiadores sul-africanos de renome. Em comum, têm o fato de reservar a Mandela um papel secundário na história e jogar luz sobre um personagem enigmático: seu sucessor, Thabo Mbeki. Se Mandela evitou que o fim do apartheid desse origem a uma guerra civil - é o argumento comum a vários ensaios da série -, foram as ideias de Mbeki que orientaram as políticas do cna nos últimos vinte anos.

Primeiro como vice de Mandela, cargo que dividiu com De Klerk, e depois como presidente efetivo entre 2000 e 2008, Mbeki teve como objetivo primordial a recuperação econômica. E conseguiu: no seu governo, a África do Sul cresceu em média 5% ao ano. Já a política social que implementou foi desastrosa, sobretudo no que diz respeito à epidemia da Aids.

Thabo Mbeki é filho de uma professora comunista e de um militante histórico do Congresso Nacional Africano que ficou preso com Mandela por quase trinta anos. Desde cedo, aprendeu que não deveria confiar em brancos ou em alguém que não fosse do cna. Foi o partido que financiou seus estudos, transferiu-o para a Tanzânia e depois determinou que estudasse economia na Universidade de Sussex, na Inglaterra. Foi o segundo estudante negro da instituição.

Ali adquiriu gostos mundanos como fumar cachimbo, usar ternos de tweed e citar poetas britânicos. E começou a formar sua visão política de culto ao individualismo, desprezo pelo populismo, e a noção de que se deveria fazer o certo para o povo, mesmo que ele não percebesse. Em 1969, quando foi mandado para um curso de liderança ideológica no Instituto Lênin, na União Soviética, tornou-se um crítico exacerbado do modo de vida ocidental.

Morou depois na Zâmbia, em Botsuana, na Suazilândia e na Nigéria, mas viajava boa parte do tempo pela Europa e pelos Estados Unidos, na condição de responsável pela propaganda e porta-voz do cna. Durante 28 anos não pôs os pés na África do Sul, criando uma distância que seu biógrafo Mark Gevisser chamou de "desconexão permanente". Enquanto a maioria dos jovens líderes do cna se formou nos movimentos estudantis, sindicais e em associações de combate ao apartheid, Mbeki foi lapidado em reuniões fechadas, em aparelhos partidários e na segurança do exílio.

"Mbeki era pelo povo, mas não era do povo", escreveu Gevisser. Isso explicaria o seu desconforto em lidar com os conterrâneos, ao mesmo tempo em que parecia tomado pela ideia de que a África, e ele mesmo, eram vítimas de conspirações. Ele foi uma figura central na negociação da transição. As reuniões com o fmi e o Banco Mundial só ocorriam em sua presença, o "homem de Sussex" do cna, como diziam seus interlocutores. Foi dele a ideia de trocar o reformismo do Programa de Desenvolvimento e Reconstrução pelo neoliberalismo do plano de Crescimento, Emprego e Redistribuição.

Mas como um militante do aparelho do cna, com curso na União Soviética, abandonou os princípios socialistas em favor de uma política de submissão ao mercado? Gevisser diz que a sua estadia no Instituto Lênin foi fundamental, mas num sentido inverso ao esperado: Mbeki teria percebido os problemas do sistema soviético e abandonou todas as ideias reformistas e socializantes. Mas manteve a visão aparelhista e conspiratória.



Era previsível que, à época do apartheid, o governo pouco se interessasse pela Aids, doença que atingia basicamente negros e pobres, e pouco fizesse para enfrentá-la. A maneira que Mbeki tratou a epidemia foi ainda mais chocante. Para ele, havia uma conspiração dos brancos imperialistas e dos laboratórios estrangeiros baseada numa visão racista sobre os hábitos sexuais dos negros. Mbeki chegou a dizer que era a pobreza (má nutrição e falta de água potável) e não o hiv, a causa da doença. Recusava-se a fornecer tratamento para os doentes e acusou os negros que tomavam os coquetéis de azt como "fracos de cabeça".

Para aplacar os críticos, Mbeki nomeou um comitê que incluía representantes de organizações não governamentais, jornalistas e sanitaristas para debater as causas da Aids. O comitê, escolhido a dedo, apegou-se ao trabalho de um bioquímico americano, Peter Duesberg, cuja tese era de que a Aids era um conjunto de doenças, sem ligação umas com as outras, resultado do uso de drogas ilícitas e de medicamentos.

Em 1997, Mbeki procurou seus camaradas de direção do Congresso Nacional Africano para falar sobre o Virodene. Uma médica portuguesa lhe dissera ter descoberto uma droga que impedia a reprodução do vírus hiv. O medicamento, testado sem o consentimento dos pacientes, teria feito com que eles recuperassem o peso e melhorado o aspecto geral.

Mbeki anunciou que a África do Sul havia descoberto a cura da Aids. Era a oportunidade, ele disse, de os africanos se livrarem das amarras da "caridade internacional", uma causa histórica da subjugação dos negros. Menos de três meses depois, descobriu-se que o medicamento era altamente tóxico e provocava a falência do fígado, e dos rins. Mbeki se recusou a desculpar-se e, simplesmente, parou de falar do Virodene.

Anos depois, soube-se que vários empresários ligados ao cna e a Mbeki - entre eles, Max Maisela, seu principal consultor quando vice-presidente - haviam investido milhões de dólares no Virodene. Um estudo da Harvard School of Public Health estimou que a política de Mbeki resultou em 330 mil mortes pelo hiv, entre 2000 e 2005.

A questão racial era sempre alardeada por Mbeki. Quando uma jornalista branca, Charlene Smith, foi à televisão contar ter sido estuprada em sua casa por três homens, ele a acusou de perpetuar a imagem do negro como predador sexual, incapaz de controlar seus instintos. Também usou o racismo para justificar a escolha da Alemanha, e não da África do Sul, para sediar a Copa do Mundo de 2002.

A jornalista Karabo Keepile, do semanário Mail & Guardian, havia me proposto uma caminhada até o restaurante em um centro comercial no bairro de Rosebank, em Joanesburgo. Anoitecia, e o trajeto parecia longo. Perguntei se havia algum perigo em andarmos sozinhas e mencionei estatísticas recentes. Estupros, 100 por dia. Assaltos, 700. Assassinatos, 50. Ela sorriu. "Não, comigo você está tranquila", disse. Pedi que explicasse melhor.

"A violência aqui é igual a qualquer lugar do mundo", disse Karabo Keepile. "A diferença é que ela sempre ficou restrita às favelas, e agora se tornou perceptível por estar batendo na porta dos brancos. Você tem que andar aqui com os cuidados que andaria em Nova York ou no Rio de Janeiro."

No ano passado houve 125 estupros para cada 100 mil habitantes. Calcula-se que, para cada queixa registrada, há outras 35 vítimas que preferem manter-se em silêncio. Ainda assim, chega-se à estatística estarrecedora de um ataque a cada vinte segundos. Quase 10% das alunas sul-africanas já foram violentadas por seus próprios professores nos banheiros das escolas. Nos Estados Unidos, a média é de 39 para cada 100 mil, número compatível ao brasileiro.

Estudiosos do tema atribuem a "cultura do estupro" a uma série de fatores combinados: rápido crescimento da população, desemprego galopante, desconfiança na polícia (que ainda é identificada como força repressora racista), pobreza, sentimento de posse tribal em relação à mulher e ignorância. Ainda há quem acredite que ter relações sexuais com uma criança ou com um bebê é capaz de destruir o vírus da Aids.



Em 2001, Mbeki resolveu reequipar suas Forças Armadas. A licitação, de 5 bilhões de dólares, para a compra de jatos, submarinos e corvetas, foi ganha por um consórcio espanhol. Mas o contrato foi fechado com um grupo alemão. Quando suspeitas de corrupção chegaram perto do governo, ele demitiu o vice-presidente Jacob Zuma, seu amigo de trinta anos, que foi acusado de receber propina. Mbeki estava isolado e com a popularidade decrescente, enquanto Zuma, um demagogo afável e agregador, era o favorito para sucedê-lo na Presidência.

Pouco depois, outra acusação levou Zuma aos tribunais. A filha de um amigo, portadora do vírus hiv, disse ter sido estuprada por ele dentro de sua casa. No julgamento, Zuma disse que, como zulu, tinha a obrigação de satisfazer as mulheres. E que o comprimento da saia da moça era sinal do que ela estava lhe pedindo. Quando foi indagado se havia se protegido durante a relação sexual, ele respondeu ter tomado "uma chuveirada", o que diminuía os riscos da propagação da doença.

Durante as investigações sobre os casos, no entanto, descobriu-se que Zuma havia sido monitorado pela Receita Federal e pelo Serviço de Inteligência. Como era vice-presidente, a medida só era possível com a autorização do presidente. Era a prova que Zuma precisava para atribuir a Mbeki uma conspiração para afastá-lo do poder.

A situação logo se inverteu. Diversos grupos de interesse - que em algum momento passaram a atacar Mbeki, fosse por suas medidas, seu modo centralizado de governar, ou até mesmo por sua antipatia pessoal - uniram-se em torno de Zuma. Mbeki foi humilhado e desacreditado. Afastado da direção do CNA, renunciou, em seguida, à Presidência. Desde então, tornou-se um pária no partido ao qual dedicou meio século de sua vida.



A Constituição promulgada depois da eleição de Mandela baniu a segregação racial. Foi proibida a obrigatoriedade de as crianças serem registradas, na certidão de nascimento, como branca, negra, mestiça ou amarela. Mas a política mais ambiciosa do cna para atenuar as desigualdades impostas pelo apartheid obrigou os sul-africanos a serem identificados novamente pela cor da pele.

O Black Economic Empowerement (Fortalecimento Econômico Negro), que todos chamam de bee, previa que todas as empresas que quisessem fazer algum tipo de negócio com o governo deveriam ter em seus quadros funcionários negros e mestiços. Era o momento da compensação. Colocado em prática em 2003, o plano de ação afirmativa tinha como objetivo fazer com que o mercado absorvesse milhões de cidadãos colocados à margem durante décadas. As empresas que
cumprissem determinadas metas de inclusão e promoção de negros ganhavam mais pontos, o que as deixava em melhor posição em licitações, contratos e parcerias com o governo.

O bee trazia embutido dois preceitos. Primeiro, o de aumentar os postos de trabalho para os trabalhadores negros pobres. O segundo era de forçar e acelerar, por meio das promoções de negros no interior da hierarquia das empresas, a formação de uma nova classe média. Os executivos negros poderiam, ainda, montar novas empresas, que contratariam preferencialmente negros.

Muitos empresários brancos, porém, passaram a nomear jardineiros ou motoristas como vice-presidentes de suas empresas. Isso fazia com que a pontuação do bee disparasse e eles levassem os contratos. Como a fiscalização era praticamente inexistente, explodiu o número de prepostos negros à frente de empresas já estabelecidas, e também de companhias moldadas exclusivamente pelos critérios do bee, unicamente para ganhar concorrências

A idéia do bee não partiu do Congresso Nacional Africano. Ela foi inventada em 1992, dois anos depois da libertação de Mandela, pela New Africa Investments Limited, uma empresa branca. Segundo o analista político Moelesti Mbeki (irmão do ex-presidente Thabo Mbeki e um dos maiores críticos do CNA), o empresariado tinha o objetivo de cooptar a nata dos movimentos de resistência, "literalmente, comprando-os com ações de empresas sem qualquer custo". Para os oligarcas, o valor era pífio. Para os militantes, era um meio de subir na vida.

E, de fato, vários dirigentes e quadros do Congresso Nacional Africano mudaram de ramo. Tornaram-se homens de negócios, sócios e donos de empresas que detinham boa parte dos contratos do governo. Cyril Ramphosa, ex-secretário-geral do partido, e Tokyo Sewale, ministro da Habitação Popular, integram a casta dos diamantes negros.

Outra vantagem para os brancos era mostrar que o cna poderia abandonar os planos de estatização, já que conseguia parcerias com empresas estabelecidas no mercado, e com negros nos seus quadros. O bee também permitia que os empresários brancos tivessem trânsito no governo, prioridade nos contratos e proteção contra os concorrentes estrangeiros.

O programa não produziu uma geração empreendedora. "O recado que se passa para os negros é que você não precisa se esforçar, correr riscos, já que os brancos vão te colocar como sócio de uma companhia", defende Moelesti Mbeki. Menos de 1% das empresas na África do Sul estão nas mãos de negros.

O Instituto Unilever de Marketing Estratégico, ligado à Universidade da Cidade do Cabo, estima que 2,5 milhões de negros tenham casa própria, carro e microondas. Num estudo denso e elogiado, o sociólogo Lawrence Schlemmer avaliou que os novos ricos são 330 mil, menos de 1% dos negros do país.



No ano passado, o jornalista e escritor inglês R. W. Johnson, correspondente do Sunday Times e colaborador da London Review of Books, nadava no lago em frente a sua casa de veraneio, na província de KwaZulu-Natal, quando sentiu um raspão nos dedos do pé esquerdo. Saiu da água e viu que sangrava. Meia hora depois, deu entrada em um hospital praticamente morto. Contraíra uma bactéria raríssima e mortal na água poluída. Para salvá-lo, os médicos tiveram que amputar sua perna esquerda acima do joelho. Os dedos do pé direito ficaram necrosados e o movimento da mão esquerda, comprometido.

Em uma manhã de fevereiro, sua mulher, Irina, professora universitária russa, abriu a porta da casa deles em Constantia, a meia hora da Cidade do Cabo. Eles moram numa região de colinas floridas, de onde se tem uma magnífica vista de vinícolas. Johnson tem 67 anos e mora na África do Sul desde os 13. Foi com dificuldade que manobrou a cadeira de rodas até a mesa abarrotada de recortes de jornais e revistas.

Intelectuais de esquerda consideram R. W. Johnson conservador e racista, mas ele rebate as críticas dizendo ser um dos "poucos a ter coragem de dizer o que todo mundo pensa". Suas opiniões costumam ser baseadas em fatos e estatísticas, que pontuam as 700 páginas de seu livro mais recente, South Africa's Brave New World [África do Sul: Admirável Mundo Novo].

"Todo o imaginário criado em torno do cna - a prisão de seus líderes, as mortes na resistência, o sonho de um governo para o povo - colocou o partido acima do bem e do mal", disse. "Mas o fato é que, quando chegaram ao poder, mostraram o que eram: inexperientes e incompetentes, além de terem rapidamente caído na corrupção", falou.

Ele contou o caso da filha de sua ex-empregada, Carolyn, para ilustrar a tênue linha que separa o público do privado nas relações dos políticos do cna. A moça, pobre, fora estuprada duas vezes na adolescência. Anos depois, Johnson soube que ela havia engravidado de um figurão do partido. Telefonou para ela e perguntou como podia ajudá-la. Ela lhe disse que não precisava nada: havia sido nomeada chefe do departamento de distribuição de livros didáticos de toda a região de Limpopo. "Carolyn mal sabe escrever o próprio nome", disse. "Então, imagine o que nos reserva o futuro desse país".

Irina trouxe chá e biscoitos e Johnson continuou: "A elite do CNA é hoje de milionários, incluindo Mandela, que enriqueceram fazendo negócios dentro do governo. Como um homem que saiu da prisão sem um centavo, hoje tem mansões em Moçambique, Joanesburgo e Cidade do Cabo? Por que ninguém investiga isso?"

Para ele, o bee é, em termos lógicos, uma sandice. "Ação afirmativa faz sentido para ajudar uma minoria e não 80% da população", disse. "O que ocorre é que o Estado vira um refém. Nos Estados Unidos, ação afirmativa é para uma minoria desassistida. Política para a maioria não pode ser a de exceção. Ter dois quintos da sociedade dependendo da ajuda do governo e apenas 5 milhões de brancos pagando imposto de renda, é a prova de que esse país ainda terá muitos problemas pela frente."

Perguntei a Johnson o que mudara na vida dos brancos desde a chegada do cna ao poder. "O crime entrou na vida dos brancos e eles perderam a rede que garantia seu futuro", constatou. "E, o que é mais grave: um jovem branco de 15 anos, que nem sabe o que foi apartheid, não vai ter emprego na África do Sul."

Foi o que quase aconteceu com a capitã Renate Barnard. Com vinte anos de trabalho na polícia nacional, a capitã se candidatou a uma promoção por duas vezes no ano passado. Foi preterida em ambas, apesar de um comitê tê-la recomendado como melhor candidata à vaga. Em março, o Tribunal Superior do Trabalho lhe deu ganho de causa no processo em que ela acusava seus chefes de "racismo às avessas". Ela disse aos jornais: "Sou uma profissional excelente, sacrifiquei minha vida e a da minha família todos esses anos pelo meu trabalho, e não me escolheram porque sou branca." Segundo seus advogados, o veredicto dava nova "direção às ações afirmativas" no país.

Uma empregada negra uniformizada e de turbante na cabeça atravessou a sala. Quando ela cruzou o corredor, Johnson retomou seu raciocínio. "Essa ideia de que 'agora é a nossa vez', que é a hora da revanche, está muito presente", disse. Ele contou que, quando convida amigos negros para jantar, "eles assumem que sou eu quem vai pagar a conta". Mencionou ainda o caso de um conhecido do Congresso Nacional Africano, a quem ele havia ajudado a arrumar uma bolsa de estudos em Oxford. "Ele jamais me ligou para agradecer", comentou. "E não é uma questão de ser educado ou não. Ele simplesmente acha que era minha obrigação fazer isso."



O Congresso Nacional Africano tem quase 70% das cadeiras no Parlamento. É apoiado pelas duas maiores forças da esquerda, a Cosatu, a maior central sindical, e pelo Partido Comunista. A Aliança Democrática, que venceu as eleições na província da Cidade do Cabo, a única a não ser governada pelo cna, é acusada sistematicamente pelo governo de ser um partido branco e racista. O passado de luta antiapartheid da governadora Helen Zille é ignorado. Políticos negros de outros partidos são chamados pelos militantes do cna de cocos: pretos por fora e brancos por dentro.

Em um fim de tarde, num restaurante ao lado do Parlamento, na Cidade do Cabo, o deputado Philip Dexter, do Congresso do Povo, o Cope, tomava vinho branco com gelo (como é de praxe em todo o país) com outros seis companheiros de partido. Formado em 2008, o Cope é uma espécie de psol. Ele agrupa militantes que, insatisfeitos com os rumos tomados pelo Congresso Nacional Africano, criaram uma nova legenda. Dexter e os amigos discutiam a formação de um novo sindicato para concorrer com a Cosatu, que, segundo eles, é "cúmplice das vilanias do governo". Imaginavam arrebanhar cerca de 1,5 milhão de trabalhadores que "não se sentem representados pelo cna". Chamavam-se de "camarada" e citavam Marx e Lênin.

Dexter é branco, tem os olhos verdes e o cabelo frisado. Na paleta sul-africana, é considerado mestiço. Usa óculos de armação preta pesada e gravata vermelha com estampa pouco discreta. Foi casado com uma brasileira e tem um filho que mora em Florianópolis. "Aqui não é mais possível falar em esquerda e direita", ele me disse. "O cna não representa mais o povo. Como você pode achar que esses sujeitos com bmws, quatro ou cinco mansões, são a cara da maioria pobre sul-africana?"

Juntou-se à mesa outro deputado, Willie Madisha, um clone do ator Lázaro Ramos, ex-presidente da Cosatu. Nos anos 80, Madisha conheceu Luiz Inácio Lula da Silva, então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, a quem disse admirar: "Ele fez do Brasil uma potência e ainda está melhorando a vida dos pobres."

Na véspera, o governo havia anunciado as metas para o orçamento de 2010. Uma delas era ampliar a distribuição de benefícios para jovens de até 18 anos, mas se manteve a estrutura assistencialista. "Nem o governo do Bush faria algo tão de direita", brincou Madisha. Do outro lado da mesa, Dexter disse: "Houve progressos, como os benefícios sociais, mas, do jeito que foi feito, eles tornam o cidadão dependente do Estado. Esse populismo tem similaridades com o que ocorre na Venezuela. É um cesarismo presidencial travestido numa retórica de esquerda. Pensam na luta de classes em termos tão rudimentares e falam em estatização não para distribuir riqueza, mas para concentrar mais poder."

A mesa se serviu de mais vinho e gelo e Dexter continuou: "A classe mais perigosa é a burguesia. Porque ela só quer o poder para proteger o seu poder. E o cna virou um partido burguês." Seus camaradas balançaram a cabeça, concordando.

Quando entrei no táxi, o motorista avistou os parlamentares, que também estavam na calçada, e perguntou se "aquele era o pessoal do Cope". E comentou: "Essa gente só quer cargo no governo. Eles acham que vão acabar com o cna e ficar com os cargos. Não querem dar uma oportunidade ao cna, que está tentando fazer as coisas, construir casas. Eles vão ter muito poder sempre, porque eles são gente nossa."



Presidente da Liga da Juventude do cna, cargo já ocupado por Mandela, Julius Malema é o deleite de cartunistas e chargistas. Aos 27 anos, ele se tornou uma das figuras mais expressivas do Congresso Nacional Africano por seu discurso nacionalista, agressivo e de ataque aos brancos. Desconhecido há dois anos, Malema ganhou projeção por ter sido peça fundamental na articulação para eleger Jacob Zuma, que o carrega para quase todos os eventos e sempre sai em sua defesa quando é atacado.

Com um salário de 5 mil reais, Malema é dono de duas casas avaliadas em 1,5 milhão de reais (pagas em dinheiro vivo), tem um Mercedes, um Aston Martin e um Range Rover. Usa um relógio Breitling de 60 mil reais e só se veste com jeans Diesel e camisas Gucci, mesmo quando visita favelas.

Uma reportagem do jornal The Star mostrou que Malema é sócio oculto de mais de dez empresas, todas elas com contratos com o governo. Soube-se que também não declara imposto de renda. Todas as vezes que foi confrontado com o fato, Malena deu a mesma resposta: "Isso é coisa de brancos racistas que não aguentam ver um negro ser bem-sucedido." A popularidade de Malema cresce a cada pesquisa, sobretudo entre a população mais carente. Comentaristas políticos o consideram um candidato potencial à sucessão do presidente Zuma, em 2012.

As denúncias de corrupção entre membros do cna explodiram nos últimos meses. O governador de Limpopo teve que renunciar depois que foi descoberto que sua mulher e filha ganharam a maior licitação da província. Publicou-se também que o ministro das Comunicações, há dez meses, gastava 1 mil dólares por dia (da verba de representação) para dormir em hotéis de luxo. Justificou-se dizendo que não haviam lhe comprado um colchão decente para o apartamento funcional do governo.

Frente aos escândalos, o presidente Zuma prometeu abrir suas contas pessoais. O governo gastava 4 milhões de reais por ano em despesas com as três primeiras-damas (Zuma é polígamo). Sobre os gastos de seus vinte filhos ainda não se sabe quem os financia.

"Muitos integrantes do cna são contrários às investigações de corrupção no governo porque muitos deles estão envolvidos", disse-me Patrick Craven, um inglês magro e grisalho, de aparência pouco amistosa, porta-voz da Cosatu há 22 anos. A central sindical, que fica em um prédio decadente no centro de Joanesburgo, apoia o governo, mas lhe faz críticas pontuais. Ela quer que os políticos tornem públicos seus bens e contas bancárias. "O que a esquerda não entende é que o problema não é a Cosatu ou o Partido Comunista: é o próprio cna. Eles vão explodir", comentou.



Às nove de uma manhã de quarta-feira, o ministro de Indústria e Comércio, Rob Davies, um irlandês barbudo e de expressão grave, tomou a palavra no seminário "bee: uma boa tentativa de compensação ou não?", na Câmara de Comércio da Cidade do Cabo, e disse ao auditório lotado: "Temos que admitir que o bee não está dando certo."

Durante mais de duas horas, Davies falou sobre as distorções do programa. Teve que responder por que não havia um padrão de exigência nas licitações. Explicou a razão de o governo continuar a selecionar empresas sem expertise nas áreas que pretendem atuar. E comentou a denúncia de que um certificado bee pode ser comprado por 300 dólares.

Ele se saía razoavelmente bem até que uma mulher branca, de cabelo vermelho, levantou a mão dizendo que ia fazer uma pergunta "como cidadã": "Quero saber o que o governo me sugere dizer a um branco pobre que se sente discriminado por não ter os mesmos direitos de um negro que também é pobre." Houve silêncio e muitos ouvintes se mexeram nas cadeiras. "Não há discriminação", respondeu o ministro. "Só entendemos que os negros têm uma desvantagem maior." A meu lado, um senhor branco comentou: "A nação arco-íris virou nação cappuccino: muito preto embaixo, uma espuminha de brancos por cima e um polvilhado de diamantes negros no topo."

Depois da conferência, o presidente da Câmara de Comércio da Cidade do Cabo, Yusuf Emeran, um descendente de indianos, me disse: "O bee é um equívoco. Nada mudou no mundo corporativo nesses últimos quinze anos. Os brancos continuam sendo os donos de tudo. O que mudou foi que os nossos militantes se tornaram milionários."

Yusuf Emeran se servia de café com bolinhos quando me contou sua história. "Fui membro do cna por 56 anos. Lutamos pela democracia para que todos pudessem votar. Passei metade na minha vida no exílio, em nome de um projeto maior. E eu digo a você: esse não é mais o cna dos nossos sonhos. Eles venderam o sonho e eu decidi que não voto mais", afirmou. Ele passou 32 anos no exílio. Fixou-se na maior parte do tempo na Inglaterra, onde ganhou dinheiro com uma empresa de saneamento. De volta à África do Sul, ficou ainda mais rico. Sua empresa é responsável pelo fornecimento de água filtrada em quase toda a província do Cabo.

"Podem falar o que quiser, mas antes do cna chegar ao poder as pessoas tinham que andar 12 quilômetros para pegar água, elas não tinham eletricidade nem teto, e hoje elas têm", disse-me Moloto Mothapo. Ele é o porta-voz da bancada do Congresso Nacional Africano no Parlamento. "O povo reconhece isso. Então, temos certeza que vão sempre votar no cna porque foi o partido que mudou a vida das pessoas."

Moloto Mothapo é alto e magro como uma escultura de Giacometti, só que com óculos de grossa armação azul. Ele acha que as denúncias de corrupção são exageradas: "Isso não é privilégio desse país. Em todo lugar onde as pessoas têm conexão com o poder, elas querem se meter nas licitações públicas. Mas estamos criando mecanismos para combater esse problema, é um dos pontos do nosso programa de metas."

Seu celular tocava a cada cinco minutos e ele parecia enfadado em ter que dar explicações sobre o comportamento dos políticos do partido, no qual milita desde os 14 anos. "O problema é que a imprensa aqui exagera, apura mal e, quando erra, publica uma retratação mínima", disse. E a seguir fez uma queixa parecida com as que são feitas do outro lado do Atlântico: "Tanta coisa boa que o governo está fazendo e eles só focam no negativo."

Do lado de fora, em frente ao portão principal do Parlamento, cerca de trinta moradores do assentamento de Khayelitsha, a 30 quilômetros da Cidade do Cabo, cantavam músicas em zulu e carregavam cartolinas com frases como "Abaixo a corrupção". O líder da manifestação, Xolila Ngenkaza, me disse: "Nós votamos no cna, mas eles se esqueceram totalmente de nós."

Segundo Ngenkaza, o governo só construiu metade das casas que prometera. E só receberam moradias novas aqueles que conheciam alguém do cna. Ou então, ele disse, "os que pagaram propina à construtora que é responsável pelas obras." de pai, criado pela mãe, empregada doméstica, Jacob Zuma ingressou na ala militar do Congresso Nacional Africano aos 17 anos. Passou dez anos preso na ilha Robben com Mandela, onde aprendeu a ler e a falar inglês. Ao ser solto, exilou-se na Zâmbia, onde se tornou chefe do serviço secreto do cna. Em 1999, foi nomeado vice-presidente de Mbeki por insistência de Mandela, que achava que a chapa deveria ser composta com um representante dos zulus - a etnia mais numerosa e pobre do país. Tanto Mandela como Mbeki são xhosa.

Na presidência, Zuma nomeou um ministro de um partido branco e nomeou uma autoridade reconhecida para enfrentar a Aids. E manteve a política econômica intacta. Sua origem pobre faz com que o povo se identifique com ele. Enquanto Mbeki citava Shakespeare em seus discursos, Zuma beija eleitores, usa roupas tribais de vez em quando, dança e canta Lethu mshini wami, uma canção da época da guerrilha do cna que quer dizer "Traga a minha metralhadora."

Há pouco, sua vida sexual voltou às manchetes. Zuma engravidara a filha de um amigo e o bebê nasceu poucas semanas antes de seu quinto casamento. Novamente, disse que isso é comum na cultura zulu.

Zuma fala o que a plateia quer ouvir e evita entrar em discussões polêmicas. Quando assumiu o governo, prometeu criar 500 mil empregos até o final do ano e 4 milhões até 2014. Como vai fazer isso, não explicou. Para seus admiradores, ele é o primeiro presidente "verdadeiramente africano", já que Mandela era uma figura mundial e Mbeki passou a maior parte da vida e de seu governo no exterior. O arcebispo Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz, no entanto, disse que a eleição de Zuma foi "um desastre para a história do cna".

"Zuma conseguiu fazer com que os pobres sintam que são ouvidos, e os ricos sintam que não serão prejudicados por serem ricos", disse-me Gugu Msibi, diretora do departamento de relações governamentais da Ernst &Young, no refeitório da empresa, em Joanesburgo. "Passar essa segurança para o mercado e para a população é um dom. É o melhor cenário possível."

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao_43/artigo_1293/Diamantes_negros.aspx