quarta-feira, 20 de junho de 2012

TEXTO COMPLEMENTAR SOBRE TEMA: FAMÍLIA

TEXTO COMPLEMENTAR

Olhares antropológicos sobre a família contemporânea

Claudia Fonseca
Antropóloga, UFRGS


É com muito prazer que venho integrar essa mesa interdisciplinar sobre novas tendências de pesquisa sobre a família. Através de uma consulta à bibliografia atual, proponho trazer aqui uma colaboração da Antropologia ao mesmo tempo que elaboro uma inquietação surgida de minhas próprias pesquisas. Trabalho normalmente em bairros da periferia urbana onde lanço mão do método etnográfico para pensar a especificidade de valores e práticas nesse contexto. Contudo, muitas vezes, ao destacar, entre os sujeitos de meu estudo, dinâmicas familiares que divergem do modelo conjugal (típico do meu contexto), tenho a impressão de reforçar, antes do que combater, estereótipos do senso comum. Qualquer desvio de padrões hegemônicos é frequentemente visto pela plateia como sintoma de inferioridade, desorganização social, ou atraso. Na melhor das hipóteses, dinâmicas alternativas em grupos populares seriam vistas como uma adaptação funcional à pobreza – “estratégias de sobrevivência”. Embora essa última noção aponte para aspectos importantes da realidade, arrisca ser usada de forma simplista, reduzindo tudo que é específico a uma questão econômica – como se “pobres” tivessem estratégia de sobrevivência em vez de cultura. Nesse artigo, procuro aproveitar a literatura atual sobre relações familiares para esboçar um modelo analítico que combate perspectivas reducionistas deste tipo.
Agrupo as pesquisas que nos interessam em duas grandes linhas: por um lado, a que enfoca o indivíduo enquanto valor fundamental da modernidade e que tem provocado uma resignificação da própria noção de família, e, por outro, a que resgata a dinâmica social das relações familiares, ressaltando a importância das redes extensas de parentesco .
Sugiro que, entre essas diferentes linhas de análise, é possível encontrar conceitos que possam ser aplicados a um grande leque de circunstâncias sem engessar a realidade em modelos pré-estabelecidos.


O declínio dos modelos hegemônicos nas análises científicas

De início, devemos lembrar que, frente à incrível diversidade de formas familiares constatadas hoje, muitos pesquisadores questionam o sentido de falar em “a família”. Certamente a imagem de família com a qual pessoas de minha geração foram criadas já foi amplamente desmistificada. Aquela família nuclear - com um casal heterossexual, unido pelo casamento e criando todos seus filhos biológicos – parece cada vez menos pertinente, tanto em termos estatísticos quanto em termos normativos. Consideremos o exemplo dos países do hemisfério norte onde mudanças recentes foram bem documentadas. De 1965 para cá, a taxa de casamento, assim como a taxa de fecundidade, caiu por trinta a quarenta por cento. Para muitos jovens, parece que o casamento legal tornou-se uma formalidade antes do que uma obrigação moral, de forma que, em diversos países, entre um terço e um quarto dos nascimentos são “ilegítimos” (ver Tabela 1). O divórcio deu um salto, triplicando e até, em certos países, quadruplicando nesse mesmo período (ver Tabela 2). Esse quadro faz com que não é surpreendente encontrar, como nos Estados Unidos, uma taxa muito grande de crianças vivendo com apenas um dos seus pais biológicos, ou, como na França, um contingente desproporcional de pessoas vivendo sozinhas. Em termos estatísticos, a unidade doméstica calcada na família nuclear não se manifesta com a mesma frequência que cinquenta anos atrás e, em termos normativos, não exerce mais a hegemonia de outrora .

A família vem, portanto, se revelando como algo bem mais complicado do que imaginávamos. E, tendo reconhecido essa complexidade, temos dificuldade em aceitar as receitas teóricas clássicas que nos ofereciam modelos simplificados. Assim, o modelo patriarcal, elaborado por Gilberto Freyre no início dos anos trinta, no âmbito da “casa grande” nordestina deixou de ser visto como matriz da família brasileira tradicional. Sabemos hoje que a sociedade colonial não se reduzia a apenas duas camadas (senhores e escravos) e que, conforme as circunstâncias históricas de cada região, as formas familiares são múltiplas. Existia, por exemplo, uma enorme população de brancos e “pardos” pobres em que a unidade doméstica média era pequena, freqüentemente chefiada por uma mulher sozinha, e contendo diversos agregados (Samara 1983, Correa 1982, Volpi este volume.). Em outras palavras, para a compreensão da complexa realidade que enfrentamos no Brasil contemporâneo, a noção da “família patriarcal” extensa, tal como foi descrita por Freyre, é vista como sendo de relevância limitada.

Outro grande teórico que, durante três décadas, parecia nos dar todas as respostas é Talcott Parsons. Lá onde Freyre nos explicava “o tradicional”, Parsons (1955) esclarecia tudo que queríamos saber sobre a família “moderna”. As análises dele, baseadas na observação de famílias de camadas médias americanas na década de 50, serviram para impor, na consciência de toda uma geração de pesquisadores, a família nuclear e conjugal como sine qua non da modernidade. Ao destacarem a “normalidade” no sentido estatístico desse modelo, as análises deslizavam facilmente para julgamentos morais. Essa família – de um casal monogâmico e todos seus filhos menores - parecia brotar diretamente da natureza humana, sendo vista como necessária para o desenvolvimento sadio de todo e qualquer pessoa.

Ora, mais uma vez, a proliferação de pesquisas antropológicas nas últimas décadas do século vinte mostrou que existe, no seio da modernidade, uma enorme diversidade de dinâmicas familiares. Comportamentos que divergem do modelo dito moderno se encontram não somente nos continentes exóticos (África e Ásia) e nas regiões “subdesenvolvidas”, mas dentro dos países vistos como protótipos da modernidade – na Europa e nos Estados Unidos. O mito da "grande convergência", que as práticas familiares, imensamente diversas, da época pre-moderna fossem coincidir em torno de um único modelo nuclear e conjugal, foi explodido (Segalen 1995). Apesar de verificarem tendências contemporâneas muito difundidas - o aumento da expectativa de vida, por exemplo, que vem modificar a relação entre gerações adultas da família, e o aumento do divórcio - pesquisadores concordam hoje que não existe padrão universal de evolução familiar.

Encontrámo-nos portanto sem as nossas antigas crenças consoladoras sobre a evolução da família- sem mito de origem (sobre o "tradicional" de antigamente), e sem crença num destino fixo (sobre um único modelo homogêneo da modernidade). Onde que tudo isso deixa os pesquisadores? Diante da constatação da diversidade empírica, e do declínio de modelos analíticos clássicos, como que analistas estariam definindo “a família"?

Há pesquisadores que tomam a própria falta de modelo como traço característico da família chamada "pós-moderna". J. Stacey, por exemplo, a partir de seu estudo de mulheres das camadas médias baixas morando num subúrbio de Los Angeles, chega à conclusão que é impossível caracterizar a família contemporânea por um conjunto coerente de termos descritivos:

A família pós-moderna não é um novo modelo de vida familiar equivalente ao da família moderna, não é o novo estágio de uma progressão ordenada da história da família, mas, sim, o estágio nesta história onde a crença numa progressão lógica de estágios se desmancha. Rompendo com a teleologia das narrativas modernizantes que retratam uma história evolucionária da família, e incorporando tanto elementos experimentais como nostálgicos, “a” família pós-moderna avança e recua para dentro de um futuro incerto (1992: 94).

Acontece que, apesar dessa indefinição, as relações familiares, de uma forma ou outra, parecem continuar ocupando um lugar de destaque na maneira em que a maioria de nós vemos e vivemos o mundo. Falar de família é evocar um conjunto de valores que dota os indivíduos de uma identidade e a vida de um sentido. Além dessa função simbólica, a noção de família - ligada à organização da vida cotidiana - ainda desempenha um papel pragmático na formulação de políticas públicas. Precisamos, portanto, de uma linguagem para falar desse conjunto de valores e práticas familiares sem cair no erro do passado – de imaginar um modelo homogêneo, coerente, hegemônico. Procuramos, por conseguintes, instrumentos para pensar as diferentes formas familiares numa perspectiva comparativa – perspectiva essa que recusa hierarquias etnocêntricas (famílias “avançadas” versus famílias “atrasadas”, etc.) e, ao mesmo tempo, resgata a especificidade de cada configuração.


O individual: um acento na ideia de ESCOLHA

Historiadores descrevem como, especialmente a partir da revolução industrial, o afeto começa a ser considerado como a base da vida familiar. Os filhos, encarados na época pré-moderna como mão de obra para a empresa familiar, segurança na velhice ou meio de perpetuação da linhagem, passam a possuir um valor, antes de tudo, afetivo. Da mesma forma, o amor romântico torna a caracterizar o matrimônio ideal, ditando a necessidade da “livre escolha” do cônjuge. Aqui, o valor central não é mais a linhagem ou o nome da família, a serem protegidos a qualquer custo (mediante o sacrifício, quando necessário, dos membros), mas, sim, a felicidade dos indivíduos (Ariès 1981, MacFarlane 1986).

Muitos pesquisadores veem as recentes mudanças nas dinâmicas familiares das camadas médias na Europa e na América de Norte como extensão desse ideário moderno. As citações de artigos em língua estrangeira foram traduzidas do original pela autora.
Sugerem que, a medida que as convenções morais de outrora iam cedendo a valores modernos, centrados na auto-realização e satisfação emocional, as relações conjugais – tanto no seu início quanto no seu final – tornaram-se abertas à negociação. Se a afeição é vista como elemento constituinte da relação de casal, a separação conjugal aparece não como uma ruptura problemática, mas antes como um acontecimento lógico naqueles casos onde o amor romântico definhou (Théry 1993). Sob esse ponto de vista, a família é vista como funcional na medida em que proporciona a cada um de seus membros as condições para seu desenvolvimento pessoal (ver Segalen 1995, Singly 2000).

Seguindo esta linha de raciocínio, deveremos notar que a atual ênfase na escolha e afeição não somente fez do término de certas relações familiares algo mais lógico, mas também permitiu a legitimação de formas familiares que até recentemente não eram aceitas. O relacionamento entre pais e filhos adotivos perdeu algo de sua aura infame, e a filiação adotiva que, historicamente, era estigmatizada por ser associada com o vergonhoso status de ilegitimidade, foi levantada por certos entusiastas como bandeira da “verdadeira família”. Na retórica destes, as crianças adotadas, enquanto filhos “escolhidos”, podem ser considerados como, de alguma maneira, mais valiosas do que aquelas que são simplesmente nascidas dos seus pais (Modell 1994). Da mesma forma, parceiros do mesmo sexo ganharam um espaço importante; se a afeição é a verdadeira base do relacionamento,
por que o casal seria limitado a um relacionamento heterossexual centrado em torno da reprodução biológica (Heilborn 1995)? A possibilidade de aceitação institucional destas várias opções foi demonstrada num recente anúncio publicado num jornal canadense pelos serviços estatais para a proteção da infância e adolescência à procura de famílias substitutas:



A criança da semana: procura-se país substitutos com diversas características

Nunca existe um número suficiente de famílias substitutas para fornecer lugares apropriados a todas as crianças mo sistema. Isso significa que as famílias substitutas que já existem estão sobrecarregadas e, infelizmente, as crianças são frequentemente deslocada de uma família para outra.
País substitutos atribuem um alto valor as crianças, compreendem suas necessidades , e ficam sensibilizadas pela fase triste e difícil que estão vivendo. Amam crianças e querem ajudá-las dando estabilidade e apoio.
Procura-se pais substitutos de todos os níveis sócio-econômicos e de todas as origens étnicas, raciais e culturais. Contemplam-se casais ou solteiros, heterossexuais ou homossexuais (com ou sem criança), trabalhando fora de casa ou não. Enviem já sua aplicação.
Para mais informações sobre este programa e suas exigências, telefone para Homes for Children(...) ou venham nos visitar (...)

The Gazette (Montreal, Quebec): abril, 2000


Certamente ninguém imagina que essas novas atitudes tenham alcançado um status hegemônico. É evidente que existem muitas pessoas – leigas e profissionais – que continuam a prever problemas
nos filhos de pais divorciados e a considerar a adoção como, na melhor das hipóteses, uma “imitação da natureza”. No caso de pais do mesmo sexo, os obstáculos sociais e institucionais são incontáveis. Ainda por cima, a maioria de pesquisadores mantém uma perspectiva crítica diante dessa “família de escolha”, apresentando-a não como um “avanço”, mas, antes, tal como qualquer outra forma familiar, como algo que faz sentido dentro de um determinado contexto, acompanhado de uma constelação específica de valores. Certos analistas questionam a grande valorização da ideia de “escolha”, sugerindo que ela seja inspirada em atitudes individualistas típicas da sociedade capitalista e consumista (Strathern 1992). Outros lembram que, para muitas pessoas, o abandono do modelo nuclear de família não é tanto uma questão de “escolha” quanto a consequência indesejada de fatores externos – antes de tudo, da pobreza. Sejam quais forem as objeções, é evidente que as concepções modernas da família, com a ênfase crescente na afeição e escolha, revolucionaram concepções tradicionais da família conjugal.


O social: A rede familiar

Ao imaginarem que a família nuclear e conjugal era a única adequada à vida moderna, muitos pesquisadores, ainda pouco tempo atrás, interpretavam as mudanças que descrevemos (baixa de natalidade, aumento de divórcio, etc.) como sinal de "crise" ou até de um declínio geral das relações familiares . Hoje, desgarrando suas análises da unidade nuclear, começam a ver as coisas de outra forma. A socióloga francesa Martine Segalen, por exemplo, critica a tendência acadêmica de tomar “a família" como mola mestre das sociedades contemporâneas e considerar o parentesco algo útil apenas para sociedades "tradicionais" ou "tribais". Formula uma definição de parentesco bem adaptada ao contexto moderno: O parentesco [pode ser visto] como um conjunto de pessoas ligadas pelo sangue ou por casamento ou por um laço de pseudo-casamento que se reconhecem não em
função de ancestrais, mitos ou territórios em comum, mas, sim, em função de direitos de deveres recíprocos, criados principalmente pela presença de crianças nascidas ou criadas por elas.(Segalen 1995: 15-16)

E, ao aplicar a noção de parentesco no quadro europeu, Segalen, assim como outros pesquisadores, descobrem que as relações familiares, longe de definharem, estão ganhando nova vida.

Essa nova vida pode ser vista, em parte, como resultado do recuo da família conjugal. Antropólogos clássicos apontam para a tensão inerente a qualquer sistema familiar entre o princípio de aliança (isto é, matrimônio) e o princípio de consanguinidade (Radcliffe-Brown 1965). Podemos visualizar essa tensão ao imaginar o indivíduo obrigado a escolher como passar o almoço dominical: na intimidade do lar conjugal, com seu esposo, ou entregue à sociabilidade do clã, na casa dos pais. A antropóloga francesa, Françoise Héritier (1975) sugere que há sociedades em que os parentes consanguíneos recebem prioridade sistemática (deixando o laço conjugal na sombra), e outras em que a relação conjugal prima, ditando distanciamento em relação à família “de sangue”. No Brasil, há indicações que a rede consanguínea nunca deixou de ser relevante. A importância da parentela extensa aparece com nitidez em grupos populares onde, diante das difíceis condições de vida e frequente separação conjugal, as redes de ajuda mútua tornam-se indispensáveis (Scott 1990, Sarti 1995). Porém, mesmo nas camadas médias onde, em princípio, o ideário individualista é mais destacada (Salem, qp89; Duarte, 1995), a falta de equipamentos públicos (creche, escola em tempo integral...) obriga o jovem casal a depender dos pais, tios, primos e irmãos para cuidar dos filhos e amparar nas demais rotinas do dia-a-dia Abreu Filho 1980, Barros 1987, Bilac 1995). Em todo caso, estudos mostram que, até na Europa, as redes familiares estão assumindo novo destaque.

É evidente que existe um aspecto prático a essas novas solidariedades. Na França, por exemplo, os jovens, tendo dificuldade em achar um emprego, querendo se aplicar nos estudos superiores e casando mais tarde, tendem a sair da casa dos pais mais tarde do que em gerações anteriores. Quando findam seus arranjos conjugais, voltam-se para os parentes consanguíneos procurando abrigo, empréstimos financeiros, ou ajuda no cuidado com os filhos (Attias-Donfut e Segalen 1998). No entanto, pesquisadores olhando para a Europa insistem que as relações de parentesco servem muito mais do que para fins utilitaristas – funções essas que, naquele contexto, têm sido preenchidas em grande medida pelos serviços do Estado. Os parentes estão se mostrando igualmente importantes para a organização do lazer. Sugere-se que, no cenário atual, mulheres das quais muitas trabalham fora, não têm mais tempo para cultivar a amizade de vizinhos e acabam, portanto, se apoiando em parentes (e, eventualmente, colegas de trabalho) para garantir uma vida social. Boas estradas encurtaram as distâncias e o telefone facilitou a comunicação tornando possível a cultivação da “intimidade à distância” com avós, tios e primos. A prosperidade do pós-guerra que, em certos países, permitiu a toda uma geração adquirir casa própria, forneceu as condições físicas para organizar festas ou mesmo férias em que reúnem-se diversas gerações do grupo familiar. Essa moradia assume seu lugar ao lado das tradicionais casas da alta burguesia e aristocracia como âncora de identidade de quem a frequenta. A geração mais velha, vivendo cada dia mais e gozando de melhores condições de saúde, se torna central na organização dos encontros da família e feriados de verão (Leonardo 1992, Gaunt 1995). Vemos então ressurgir através dessa rede familiar – um novo tipo de clã - agrupando, sobretudo, os parentes consanguíneos e seus respectivos companheiros do momento.

O velho adágio, “o sangue é mais espesso do que a água”, tão central ao modo euro-americano
de pensar as relações de parentesco (ver Schneider 1984), se impõe com força renovada. Hoje, como atesta o negócio emergente das árvores genealógicas de família – assim como a popularidade crescente das reuniões de família que juntam pessoas que nada têm em comum além de um determinado sobrenome – a ideia de descendência genealógica parece ter perdido nada do seu apelo. Assim, mais do que nunca, as pessoas, fugindo de seu status de cidadão anônimo, procuram nas relações familiares a chave de seu pertencimento social (Segalen 1995).

Seria, contudo, um erro associar a descendência genealógica automaticamente a uma questão de reprodução biológica. Héritier destaca, entre os valores universais que governam as relações humanas, a natureza eminentemente social da relação entre pais e filhos: "A filiação", ela nos garante, não é nunca "um simples derivativo dom engendramento.” (1985: 9) Para reforçar essa ideia, podemos citar um caso tirado de um filme brasileiro bem conhecido, "Eu, Tu e Eles". Trata-se de uma história supostamente verídica de uma mulher interiorana que, tendo intuído a esterilidade de seu marido, gera três filhos com três homens diferentes. No decorrer do filme, enquanto cada novo companheiro vai se instalando na casa ao lado dos outros, vemos delinear um grupo de parentesco tal como foi descrito por Segalen: um conjunto de pessoas ligadas pelo sangue, pelo casamento e pseudo-casamento que se reconhecem [como parentes] em função de direitos de deveres recíprocos, criados principalmente pela presença de crianças nascidas ou criadas por elas (1995: 15-16). O mais interessante é como, na cena final do filme, é justamente o marido - que não gerou nenhum dos filhos, que os leva para fazer registro de nascimento no seu nome. É evidente que ele não age assim para encobrir a realidade, pois as relações extra-maritais de sua mulher são de notoriedade pública. A atitude carinhosa do homem leva o espectador a minimizar também a hipótese de violência patriarcal. Leva a crer, antes, que, apesar dos fatos biológicos, esse homem se sente e também é visto socialmente como pai daqueles meninos.

No atual cenário, os termos “moderno” e “arcaico” parecem perder sentido, inviabilizando a hierarquização de formas familiares. Essa constatação não significa, contudo, que não existam diferenças. Pelo contrário. A falta de um modelo claramente hegemônico acompanha a proliferação de dinâmicas familiares específicas a determinados contextos, tal como vemos nos exemplos que seguem.


Dois exemplos para contemplar

O primeiro exemplo traz ao palco Volnir, um economista muito bem pago, próximo dos seus 50 anos. Embora tenha se casado oficialmente apenas uma vez, teve três relacionamentos duradouros em convivências que produziram, ao todo, cinco crianças. Agora, em seu quarto relacionamento - e desempenhando o papel de pai substituto para os filhos de sua namorada atual - ele (em suas próprias palavras) “fechou a torneira” através de uma vasectomia cirúrgica. Sempre zeloso em seu papel paternal, participou ativamente na criação de seus filhos, que fosse enquanto esposo ou pai solteiro. Em quaisquer circunstâncias, sua casa permanece como uma opção em aberto para seus filhos. As ex-companheiras, todas com educação superior, têm empregos de bom nível. Mesmo assim, Volnir tem renda suficiente para pagar uma pensão alimentícia a cada uma, nunca tendo enfrentado maiores problemas com esta questão financeira. O interessante a respeito deste caso - e que o diferencia de histórias similares do passado (os senhores da casa grande, por exemplo, de G. Freyre) - é que as pessoas das diversas etapas da história familiar de Volnir parecem manter boas relações. De fato, ele faz questão de organizar reuniões anuais nas quais suas diferentes ex-esposas, seus respectivos companheiros5 e as crianças de todos se encontram na casa de veraneio de Volnir, numa remota praia do nordeste. Ele envia-me fotografias da sua atual namorada, tomando banho de sol ao lado de suas ex-mulheres, e se compraz em me contar como a sua filha mais nova, hoje com quatro anos de idade, vai de um lado a outro desta família estendida, perguntando às pessoas “você é o quê meu?”.

Nosso segundo exemplo introduz pessoas com nível de vida radicalmente diversa do da família de Volnei. Encontramos agora uma mulher, Dona Maria, que, durante boa parte de sua vida, vivia em condições tão precárias que perdeu nove de seus dezessete nenês, nascidos prematuros ou subnutridos. Já que seus diversos ex-companheiros nunca pagaram pensão alimentícia, ela teve que procurar meios alternativos, além de seu trabalho de faxineira, para garantir o sustento de seus filhos. Um foi entregue à avó paterna, dois foram criados por uma velha senhora que nunca tivera filhos próprios, outro fugiu de casa quando tinha pouco mais de oito anos e “ficou rolando por aí”. O que impressiona nesse quadro é que, apesar da dispersão das crianças, a rede familiar se manteve basicamente intata. Quando conheci Dona Maria, ela residia, com seu companheiro de então e as três filhas deles, numa casa ao lado de dois filhos casados (incluindo o que fugira de casa). Reinando como “avó” orgulhosa dessa família extensa era a senhora (agora realmente anciã) que servira como mãe substituta para parte da prole. (Que essa senhora não possuísse qualquer laço consanguíneo com os outros moradores do terreno não parecia incomodar ninguém.) Maria não mantinha, pessoalmente, contato com seus ex-companheiros, mas seus sete filhos se reuniam periodicamente (os que não moravam perto, vinham para churrascos na casa da mãe) e, em certos casos, incluíam os parentes paternos de seus meio-irmãos nas suas redes sociais.

Seria absurdo sugerir que, nos dois casos descritos aqui, os significados atribuídos às diversas relações sejam exatamente os mesmos. Já destaquei em outro lugar a noção particular de “mãe” nos grupos populares que estudei onde muitas pessoas, tal como seus próprios pais, se criaram entre diferentes casas, chamando duas ou três mulheres de “mãe” (Fonseca 1995). Não encontro, nem esperaria encontrar o mesmo uso de termo “mãe” entre os filhos de Volnir. As famílias de Volnir e Maria são herdeiras de tradições diversas: ele, filho da burguesia cearense, ela, filha de trabalhadores agrícolas do interior gaúcho. Sofreram influências ideológicas (educação, religião, política) diferentes. Em função do lugar que ocupam na sociedade, travaram estratégias e tiveram experiências de família também diferentes. Contudo, nos dois casos, encontramos dinâmicas que só se tornam visíveis quando a análise vai além da unidade doméstica isolada e o momento presente para vislumbrar a lógica de um sistema mais amplo de parentesco.

Não cabe, nesse curto espaço, aprofundar a análise da lógica específica a cada contexto. Aqui, a justaposição dos dois casos visa simplesmente desencadear um processo reflexivo. Pesquisadores parecem aceitar com relativa facilidade aplicar novos parâmetros da “família pós-moderna” quando tratam, nos seus dados, de camadas abastadas. Falam então de “produção independente”, “descasamento” (Théry, 1993), “família de escolha”, etc. Famílias dos setores mais pobres da sociedade, contudo, devem em geral se contentar com rótulos mais antigos que, na maioria dos casos, carregam conotações pejorativas: “mães solteiras”, “famílias desestruturadas”, “filhos abandonados”, e assim por diante. Procurar alguns conceitos analíticos que sirvam para pensar os dois casos, mais uma vez, não implica no achatamento da diversidade. Serve, antes, para resistir à tentação de erguer um tipo familiar em modelo, avaliando todos os outros em função dele. Sugere, enfim, que existem conceitos mais ágeis do que “a família” para explorar as diversas formas familiares típicas da época atual.





“Da família ao parentesco em sociedades complexas”. Participação na Mesa Redonda “O lugar da família na ciência contemporânea: desafios e tendências na pesquisa”.
Congresso Internacional Pesquisando a Família, Florianopolis 24-26 de abril, 2002.
Publicado em In Pesquisando a família: olhares contemporâneos (Coleta Rinaldi Althoff,
Ingrid Elsen, Rosane G. Nitschke, orgs.). Florianópolis: Papa-livro editora.

Uma terceira grande linha, tratando do impacto das novas tecnologias reprodutivas sobre crenças ligadas às fronteiras entre cultura e natureza, é descrita em outro lugar (Fonseca 2002).

J. Stacey (1992) nos lembra que nos E.U.A., de acordo com um censo de 1986, apenas 7% das
famílias correspondem ao modelo nuclear clássico de família – um pai provedor de família e uma mãe em tempo integral morando junto com todas suas crianças com menos de 18 anos. M. Segalen e F. Zonabend (1986) consideram a família nuclear como um construto ideológico típico do período do pós-guerra, cuja validade foi paulatinamente erodida, tanto por um questionamento intelectual (e antropológico) como por uma inequívoca proliferação de padrões de conduta.

Tal ótica é típica da escola de Frankfurt (ver, por exemplo, os textos de Adorno e Horkheimer em Canevacci 1981) e outros pesquisadores particularmente da Alemanha onde, depois da Segunda Guerra Mundial, houve uma rejeição en masse da família tradicional, associada ao fascismo (ver Schultheis, 1995).

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